Estrangulado [Resenha do Filme]

O veterano diretor húngaro Árpád Sopsits tem seu novo longa-metragem, de 2016, exibido na ‘Perspectiva Internacional’ dessa 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Somos conduzidos por uma história passada na provinciana cidade de Martfü, baseada em fatos reais, ocorrida numa Hungria soviética dos anos 60, e com excelente domínio da narrativa o diretor nos entrega um competente thriller policial.
Não necessariamente em preto e branco, mas mais “preto” do que colorido, o policial de tom quase noir (pelo menos na narrativa é bastante) com uma intensa fotografia escura e um inteligente jogo de luzes (sempre escassas, pontuais, ou às vezes contrastando em cenas muito claras), nos apresenta a história de um serial killer que aterroriza os habitantes da pacata Martfü. A polícia e o Ministério Público rapidamente resolvem o caso e ele se fecha aparentemente sem pontas soltas, pacificando e satisfazendo a opinião pública; ocorre que, o tal caso gerará repercussões ainda durante 10 anos.
Réti Ákos (Gábor Jászberényi) é preso e condenado a pena de morte (reduzida para prisão perpétua) por estrangular, matar e estuprar o cadáver de uma moça trabalhadora da fábrica de sapatos local (orgulho da Martfü soviética). O bizarro caso gera um efeito de terror sobre a cidade e uma urgência nas autoridades em pacificar a situação e demonstrar a competência da burocracia soviética em garantir a segurança pública. Tudo sai do controle quando mais corpos começam a surgir com as mesmas marcas de sinistros hábitos necrófilos do serial killer.
Com momentos chocantes e não indicados para todas as audiências e olhares mais sensíveis (embora condizentes com o enredo), este thriller policial lembra também a construção de uma tensão silenciosa e sutil com a angústia e a falta de ar gerada em icônicos exemplares do gênero (e.g. o clássico O Colecionador de Ossos, de 1999, para quem já assistiu). O diretor Árpád Sopsits oferece um total domínio da narrativa e do suspense e consegue nos envolver completamente no mistério da história.
O desenvolvimento da narrativa é lento e cuidadoso, entregando aos poucos dados e mistérios, e surpreendendo até quando fica previsível. A iluminação escura só ajuda nesse quesito. Também a movimentação da câmera é muito fluida e agradável, sendo bastante funcional ao mesmo tempo que esteticamente caprichada.
Talvez, o maior pecado do filme esteja em algumas atuações, bastante mecânicas, mas a habilidade do diretor e do montador também são refletidas na edição, que bastante dinâmica consegue fazer breves esses momentos em que atuações ruins poderiam estragar o envolvimento com a trama, e rapidamente intercalam planos que nos devolvem ao mistério e à curiosidade acerca dela.
Há nos cinemas do leste europeu, às vezes, uma tentativa de passar a limpo o passado soviético desses países, denunciando abusos e outras situações em geral complexas e polêmicas para definir esse período. Há também filmes saudosistas e que lembram com certa ternura os aspectos positivos do período. Felizmente Estrangulado escapa dessa dualidade política.
Aqui temos um thriller policial tão puro, enquanto gênero, e ambientado com tanta naturalidade e honestidade histórica numa Hungria soviética que poderia quase ser um filme feito na clássica Mosfilm do cinema soviético – sempre muito competente e com exemplares de alta qualidade, embora não tão famosa quanto a sua contraparte estelar do lado oeste do mapa-múndi. Talvez só não tenha o sido porque neste filme há também um comentário crítico à corrupção na máquina estatal soviética.
Como acompanhamentos o desvelamento de uma “trama de detetive” e um curioso relance jurídico sobre o funcionamento da burocracia soviética, temos especialmente nas figuras do investigador de polícia Bóta nyomozó (Zsolt Anger) e dos promotores, o experiente mentor Katona Gábor ügyész (Zsolt Trill) e o pupilo, Szirmai Zoltán (Péter Bárnai), uma representação de várias incongruências e estereótipos.
Eles levantam reflexões acerca da fragilidade de um sistema penal, por um lado sob uma burocracia que foi se corrompendo e tornando-se mais leniente à medida em que se habituava a privilégios e promoções fáceis de carreira, e por outro, sob um imperativo de orgulho nacional (uma preocupação genuína em demonstrar sempre a mais absoluta competência estatal ao prover os serviços básicos à sociedade, como segurança – mesmo que fosse maquiada); ao mesmo tempo que questiona se há espaço nesse meio para o profissionalismo, boa vontade, vigoroso idealismo e trabalho enérgico na persecução da verdade penal, a fim de resolver de fato problemas públicos e ainda garantir como inabalável a boa imagem do Estado.
Uma polícia corrupta e que institucionaliza a tortura à revelia da legalidade existe na verdade em qualquer época e em qualquer lugar do mundo (incluindo nosso Brasil atual). E por isso que esse tema também se torna universal – especialmente porque o filme se furta a um tom maniqueísta ao apontar as falhas do sistema passado, e se mantém mesmo na sinceridade da representação de um caso que foi real, e que de fato encontrou os problemas que teve por conta de uma burocracia falha.
Inclusive, para enaltecer a gravidade que essa falha trouxe a um caso que se arrastou por 11 anos, é que o filme se utiliza por vezes do choque, como nos obrigar a contemplar com calma e atentamente cenas bastante repulsivas; o que em nenhum momento soa como sensacionalismo barato do filme, e sim serve a esse aspecto de aprofundar a narrativa no sentido da crítica a uma má condução investigativa num caso criminal e o nível de horror produzido em função dessa incompetência.
Este tenso e competente representante do cinema de gênero (de thriller policial) – e que poderia muito bem passar por um noir policial do saudoso cinema soviético – pode ser uma boa opção para se entreter com um suspense investigativo nessa Mostra, tão carente de filmes assim neste ano; mas pode cansar alguns, ou pior, chocar outros. A opção vale para a dúvida entre alguma outra sessão e por conferir um exemplar do cinema húngaro que dificilmente estreará por aqui.
ESTRANGULADO (STRANGLED), de Árpád Sopsits (118′). HUNGRIA. Falado em húngaro. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 16 anos.
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 6 27/10/17 – 21:10 – Sessão: 855 (Sexta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 4 28/10/17 – 17:10 – Sessão: 947 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 5 29/10/17 – 17:30 – Sessão: 1080 (Domingo)
Gui Augusto

2 thoughts on “Estrangulado [Resenha do Filme]

  • 30 de outubro de 2017 em 01:09
    Permalink

    Oi Gui!
    Não conhecia o filme, nem o diretor, mas você já tinha me ganhado ao mencionar "noir" hehe. Aí você acrescenta "tensão silenciosa", uma menção a "O Colecionador de Ossos" (que gosto muito) e tudo isso vem acompanhado de uma trama crua e promissora? Certamente foi para a minha lista.
    Beijos,
    Alem da Contracapa

    Resposta
  • 29 de março de 2019 em 23:26
    Permalink

    Filmaço. Me senti na adolescência quando assisti o Silêncio dos inocentes.

    Resposta

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