Do Fundo Da Estante: Nosferatu – O Vampiro da Noite
O amor, a depressão, a fome e a paixão.
O conde Drácula deste Nosferatu é uma figura repugnante e mais digna de pena do que assustador. Com uma presença ameaçadora e ao mesmo tempo frágil, essa visão é bastante coerente, já que se trata de uma criatura infeliz que vive isolada em um castelo, se alimenta apenas de sangue e sofre há séculos pela mulher que tirou a própria vida. Ninguém melhor que a perturbação em pessoa, Klaus Kinski, pra encarnar o conde Drácula reimaginado pelo diretor alemão Werner Herzog. Parceiros em cinco filmes, Kinski e Herzog viviam uma relação de amor e ódio, o que resultou no documentário Meu Melhor Inimigo (1999), dirigido pelo próprio, num misto de homenagem e acerto de contas que provavelmente nunca aconteceu.
Desde a abertura com múmias mexicanas reais, passando pelo voo solo de um morcego e takes externos inspirados em quadros famosos, tudo em Nosferatu foi pensado e bem executado. Também é louvável a coragem de realizar esta adaptação do livro Drácula do escritor Bram Stoker (1897), tendo como referência o clássico Nosferatu (1922) de F.W. Murnau e todos problemas legais referentes à obra – Murnau não obteve autorização da família de Bram Stoker e teve que mudar algumas coisas, além de pagar indenização e sofrer o boicote de seu trabalho.
Com sua impressionante e pesada direção de arte gótica, o Nosferatu antigo ainda é objeto de estudo e tudo nele após mais de cem anos de seu lançamento é admirável. Mesmo feito nos tempos do cinema mudo, ninguém ousou refilmá-lo depois com o advento da cor e do som.
Herzog não se intimidou e realizou um filme com personalidade própria, fazendo jus ao status de melhor diretor de cinema alemão da época. Ao som da fantástica trilha sonora da banda de krautrock progressivo Popol Vuh, acompanhamos o corretor de imóveis Jonathan Harker (Bruno Ganz, de Asas do Desejo) que vai até a Transilvânia fechar a venda de uma casa com ninguém menos que o conde Drácula (um excepcional Klaus Kinski), morador de um castelo onde estranhos eventos acontecem.
Ao ver a foto a esposa de Harker, Lucy (Isabelle Adjani, que se tornou musa gótica por conta deste trabalho), o conde percebe se tratar da reencarnação de sua amada esposa.
Outrora entediado com o casamento e empolgado com a viagem, Jonathan volta doente e desiludido, uma metáfora referente à população alemã, que insatisfeita, buscava imigrar para outros países mas acabavam voltando a contra gosto. Acertadamente, o diretor associa a chegada do conde ao encontro de Lucy com a peste, fotografando a volta do que ocorria com os personagens. Numa cena pra lá de emblemática, burgueses contaminados fazem sua última refeição ao ar livre, cercados por mais de 10 mil ratos reais. Não há como não lembrar dos eventos da pandemia da Covid 19…
Herzog foca em Lucy para conduzir a narrativa, passando de esposa doce e submissa a uma verdadeira fera destemida quando percebe que precisa salvar o marido do mal que se aproxima. Com seus olhos arregalados e postura firme, é o conde Drácula que deveria temê-la quando se olham pela primeira vez. Se a intenção dele era resgatá-la para si, a de Lucy é claramente destruí-lo.
Com um casamento que claramente não foi consumado (a cena das camas separadas e a apatia de ambos quando estão juntos evidenciam isso), Lucy também acaba se sentindo atraída pelo Nosferatu quando ele surge, mas sabe que precisa ajudar o marido ao invés de se entregar ao prazeres da carne. Esse triângulo amoroso macabro além de inusitado é emblemático também – a relação a dois, os problemas de convivência, o desejo ou a falta dele, tudo segue sendo assunto desde que o primeiro livro a respeito foi escrito.
Nosferatu marcou tanto que, sua atual versão dirigida por Robert Eggs em 2024, é muito mais inspirada nela do que na versão de 1922 ou na de 1992 do diretor Francis Ford Coppola. Com 45 anos de seu lançamento e após inúmeras citações e sátiras, Nosferatu perdeu um pouco de sua força, principalmente após o lançamento do deslumbrante Drácula de Bram Stoker (1992), onde Coppola fez uma versão definitiva – o que obrigou ao diretor Robert Eggs enveredar pelos primórdios do personagem e sua essência, o que também resultou num trabalho com muita personalidade.
Tirando o viés do terror, Nosferatu é uma história de amor onde alguém que vive a maldição da vida eterna e é incapaz de ser amado, vaga faminto de paixão/sangue mesmo tendo muita riqueza material. O enredo guarda tantas reflexões referentes ao comportamento humano que o que menos assusta aqui é o sobrenatural.
FICHA TÉCNICA
Título: Nosferatu – O Vampiro da noite
Título Original: Nosferatu – Phantom der Nacht
Direção: Werner Herzog
Data de lançamento: 17 de janeiro de 1979