Bikini Moon [Resenha do Filme]

Uma equipe de cineastas está fazendo um documentário num albergue da cidade de Nova York. Entre tantos moradores de rua e figuras comuns, um trabalho protocolar de triagem dessas  pessoas, nada de novo na rotina de agentes sociais e voluntários, a objetiva da câmera é imediatamente atraída pelo brilho de uma personagem que parece vinda de outro mundo, destacando-se naquela multidão com seu estilo, sua beleza, seu olhar desafiador e seus dentes branquíssimos: Bikini (Condola Rashad).

Bikini não parece ser uma moradora de rua à primeira vista (em comparação com os outros que estão ali). Só quando começa a falar é que suspeitamos de esquizofrenia. Ela conta sobre seu passado, sobre sua família e sobre seu nome, mas nada parece crível. A equipe decide investigar a fundo, e para isso, leva Bikini à tiracolo. Os documentaristas estão interessados em outros potenciais de Bikini (não na sua história de vida), em especial o ambicioso e um pouco obsessivo diretor, Trevor (Will Janowitz) e sua namorada, Kate (Sarah Goldberg).

As visões de todos e a lente da câmera orbitando em torno de Bikini logo começam a se embotar, a se embaralhar, a se confundir. Até o sentido se perder e tudo entrar num ciclo gradual de histeria e loucura. Tudo começa a não fazer sentido mais, ou, tudo começa a até fazer sentido demais. Determinados cotidianos sociais vão sendo desenvolvidos na tela, num microcosmo dessas personagens, diversos quadros da vida contemporânea são emulados, e a sequência de cenas retratando a normalidade da vida é que soa surreal se vista de uma vez, como se numa ilha de edição (e nós fossemos os editores), e em frenética sucessão, como o filme coloca.

As narrativas imaginárias de repente tomam vida, o que antes era mentira agora é verdade. Bikini tinha ou tem uma filha? Teve ou tem família? Foi uma veterana de guerra no Iraque, como conta? Por sua vez, novas nuances e novas camadas surgem de onde antes parecia tudo perfeito. A lente é mais obscena e provocadora do que as palavras de Bikini; que não tem travas, não tem freios, e nem os escrúpulos exigidos pela discrição burguesa que rege a sociedade.

Ela é louca talvez? Ela é uma personagem esquizofrênica? Como gosta de dizer Kate, ela “precisa tomar remédios”? Chega um ponto em que nem sabemos quem está mais doente: se é Bikini, que exprime sua verdade com naturalidade e não hesita em revelar o seu caos interior, ou se é o fragilmente contido caos que se esconde por trás da cotidiana aparência da normalidade (e da perfeição).

Esse determinado modelo de sociedade, do qual Bikini é produto descartado e deformado, é aquele que implica como sinônimo de normalidade média ter filhos, formar família, estar empregado e tomar remédios. Essa é a vida de todo mundo ali, menos de Bikini. Não por menos é ela a anômica, a outsider que vive às margens.

O diretor e roteirista macedônio, Milcho Manchevski (de quem o filme ‘Antes da Chuva’, de 1994, está na lista dos “1000 melhores filmes já realizados”) cria um filme catártico que visa desmontar toda a solidez desse modelo social e do discurso ideológico sustentáculo desse status quo; ele invade a privacidade, dilui o eu, rompe os espaços privados para questionar com qual facilidade ‘tudo o que é sólido se desmancha no ar’. Ou melhor: se dissolve como numa trip de ácido.

Sua obra é lisérgica e provocativa, sarcástica e irônica, flerta com o surrealismo para retratar a realidade de uma forma que nem um documentário conseguiria tão bem. Seu subtítulo é: “um documentário sobre o conto de fadas”. Ele não é nem um documentário, nem um pseudo documentário (mockumentary); é uma ficção sobre um documentário, que é sobre uma equipe de documentário, que está filmando uma realidade, que se torna um perturbado conto-de-fadas urbano moderno.

A realidade documentada de repente escapa à própria realidade. Uma hora o objeto documentado passa a documentar os seus documentaristas (e com uma câmera velha, de imagens de baixa qualidade, acessa nuances nunca antes vistas sob a perfeição mostrada pela lente de alta qualidade). O objeto toma consciência de si e vira sujeito. Objeto que se apropria do filme sobre si; se apropria da ficção sobre si, das narrativas sobre si, do documentário sobre si. Apropria-se de si por meio do outro. Outra hora um objeto tem sua intimidade explorada sem escrúpulos; outra hora um objeto documentado é violentado pelo documentarista (duas posições que não poderiam se chocar, deveriam manter-se distantes). Aliás, ironicamente os documentaristas são oniscientes e onipresentes, surgindo nos mais inesperados momentos, testemunhando tudo, de ilegalidades e crimes a momentos íntimos.

Milcho opera com inversões de posições o tempo todo. Às vezes temos a sensação de que os objetos filmados somos inclusive nós mesmos. Dentro do filme ele brinca com o conceito de uma equipe desconstruindo a linguagem cinematográfica clássica, mostrando sem qualquer problema os microfones, as câmeras, os bastidores, todo o aparato de cinegrafia, produção e edição; justificando-se como conceito estético pelo excêntrico diretor Trevor: “we like the mic”. Ele quebra a quarta parede várias vezes, às vezes uma dentro da outra; e inclusive em momentos climáticos e dramáticos. A total subversão da linguagem narrativa se reflete na subversão da linguagem instrumental empregada pelo diretor Milcho Manchevski. É como se ele próprio estivesse passível de trocar posições com o seu alter ego diretor Trevor.

Chega um ponto que Kate, Trevor e sua equipe se descaracterizam; suas personalidades vão se dissolvendo no universo psicológico de Bikini. Questiona-se o que é falso e o que é real. A protagonista não tem uma subjetividade própria, não se define e só pode ser dificilmente ou parcialmente definida. Ela não é só uma pessoa, ela é um repositório de várias incongruências típicas daquela sociedade. Ao assumir vários papéis e agir como uma camaleoa, Bikini purga as falhas, os restos, a violência desses papéis sociais. Além disso, suas roupas, sua vestimenta: ela é um amálgama de lixo ideológico, de pastiche cultural. Sua função mágica, de uma princesa do conto-de-fadas transtornado da realidade contemporânea é incorporar os horrores e contradições dessa sociedade (e.g. quando apresenta para uma multidão de pessoas em alegria eufórica numa festa de casamento a história de um objeto cultural milenar, o significado de um Louva-a-Deus de ouro; que instantaneamente é tomado pela multidão e adorado, tornado objeto-fetiche, ignorando-se sumariamente o discurso de Bikini sobre suas propriedades culturais e ignorando-se o significado da coisa).

Do alto dos seus 58 anos, Milcho, provocador assim faz também o comentário mais genial e ferino à sociedade informatizada em comparação a filmes recentes que tentam tocar esse assunto (e.g. abordagens como a de Michael Haneke em Happy End ou a do filme Satã Disse Dance – os dois nessa 41ª Mostra – soam piegas, anacrônicas, vazias de sentido crítico e político, são apenas estéticas). Quando Manchevski obriga o seus espectadores a assistirem uma breve (e bastante) sequência de vídeos do Youtube, pela primeira vez ficamos incomodados e passamos mal na poltrona: homicídios, suicídios, acidentes grotescos, apologia apaixonada a armas de fogo; está tudo ali, gratuito e à vontade na internet. O diretor então põe suas personagens a rirem diante desses vídeos, fazendo comentários banais como se estivessem assistindo apenas mais um reality show televisivo.

Ele escancara o quão doente está a sociedade de massas ante as facilidades, comodismo, conforto e impessoalidade que o mundo conectado trouxe à humanidade. Em que ponto está nossa cultura do espetáculo? E ainda podemos nos indagar: por que grandes empresas como Facebook ou Google com frequência censurarem nudez, posicionamentos políticos e humor politizado, mas não censurarem aquilo ali?

Bikini Moon traz em seu bojo muitos outros debates. O estado mental de veteranos de guerra norte-americanos, que voltam de suas missões traumatizados e com vidas para sempre mudadas, enquanto a hipocrisia do discurso político oficial mascara todo o horror com ufanismos patrióticos; o modelo de família tradicional se desestruturando no mundo moderno com a mesma facilidade e velocidade duma sequência de cenas mundanas num filme; a ganância no showbusiness, em qualquer nicho, incluindo o do próprio circuito alternativo, onde realizadores como os documentaristas aqui retratados estão sempre buscando o próximo hype no festival da temporada, enquanto exploram histórias e vidas alheias e acabam fazendo sensacionalismo em nome da arte (social e ‘bem intencionada’); a sociedade do espetáculo mas também e principalmente da vigilância, em que a qualquer tempo podemos inverter posições na câmera mas sempre a todo tempo o filmado pode ser filmante e o filmante pode ser filmado; sociedade onde os pólos objetivos se confundem como se as posições entre desejado e desejante se confundissem (criando clivagens psíquicas profundas).

E tudo surge principalmente nos diálogos. As situações nonsense acompanhadas dos diálogos mais surreais às vezes caem inesperadas e como uma bomba perscrutando com criticidade e sarcasmo a sociedade. Eles emulam momentos, frases, situações provocativas, cotidianas, e também incômodos (e violências) vivenciados pelas versões reais dessas personagens. O potencial desses elementos é só elevado pela forte atuação das duas atrizes, Condola Rashad e Sarah Goldberg, extraordinárias.

Em vários momentos o filme é irônico, de modo que pode até passar despercebida sua intenção (como colocar uma família negra num bairro branco burguês chamando a polícia e pedindo para prender uma negra que os está vigiando – Bikini, no caso). Ele é sarcástico; seus comentários sobre a sociedade são destrutivos, de uma visão degenerada: pela lente de Manchevski vemos uma sociedade hipócrita, demagoga, repleta de seres humanos normais (os ditos cidadãos de bem, talvez) e cheios de “boas intenções” que na verdade são autômatos absolutamente neurotizados, oligofrênicos; uma sociedade decadente que está ruindo.

Para entender o filme de Manchevski, o diretor-filósofo da espécie mais destrutiva e potente, talvez fosse recomendável tomarmos uma dose de Deleuze e Guattari antes; para melhor compreendermos onde aí se encaixam as posições de personagens esquizofrênicas e oligofrênicas numa sociedade montada sob agenciamentos maquínicos externos sobre corpos; que reinstala os órgãos à revelia de seus próprios donos; ou o potencial destrutivo e libertador vazado das fendas dum psiquismo descolado, ante a psicose administrada, à serviço dum modelo social capitalista.

Bikini, num breve momento afirma que seu nome é em referência ao atol de Bikini (ilhas no Pacífico utilizadas para testes nucleares no século passado). Não seria uma referência vazia: sua beleza decaída é como a ilha, degenerada por sucessivos testes nucleares; Bikini também está degenerada pelo poder destrutivo atômico desse modelo de vida insana que a sociedade contemporânea construiu. Sua presença na vida dos “normais” cria rupturas, causa dissonâncias, rachaduras donde devires possam jorrar; só assim, através de um choque violento, revelando os demônios que há por debaixo de toda a superfície. Dirigindo-nos aos cantos mais fundos e sombrios do universo psicológico de Bikini, o filme nos leva para um passeio à própria obscuridade da psique coletiva de um modelo de sociedade.

Sessões: http://41.mostra.org/br/encontre-as-salas/

BIKINI MOON (BIKINI MOON), de Milcho Manchevski (102′). EUA. Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português. Curta: O FIM DO TEMPO (THE END OF TIME), de Milcho Manchevski(6′). Indicado para: 14 anos.
CINESESC 21/10/17 – 21:45 – Sessão: 207 (Sábado)
RESERVA CULTURAL – SALA 2 22/10/17 – 21:40 – Sessão: 364 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 23/10/17 – 19:10 – Sessão: 402 (Segunda)
CINEARTE 1 30/10/17 – 14:00 – Sessão: 1115 (Segunda)

Gui Augusto

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