Marlina, Assassina em Quatro Atos [Resenha do Filme]

A coprodução da Indonésia com a França, Malásia e Tailândia é o primeiro filme indonésio a participar de Cannes em 12 anos. Marlina, Assassina em Quatro Atos, que disputou a ‘Quinzena dos Realizadores’ no festival, é um longa-metragem da diretora de mesma nacionalidade, Mouly Surya, quem aos 37 anos conta com mais dois longas no currículo. Este, seu novo filme, integra a programação da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Nas suas equilibradas 1h30m de duração, a diretora e corroteirista nos entrega a jornada de Marlina (Marsha Timothy) uma jovem viúva que vive isolada com seu parco patrimônio na árida região de Sumba, até o dia em que Markus (Egy Fedly) e alguns homens resolvem fazê-la uma visita para checar como estão as coisas após a morte do marido e também se ela pretende se casar em breve…
Em 4 atos (literalmente, como no nome do filme), então, vemos como Marlina foi brutalmente tirada de sua tranquilidade apenas para ser obrigada a embarcar numa jornada de vingança (e empoderamento). Com ares de um road movie peculiar (e à cavalo), acompanhamos as reviravoltas da vida de Marlina, sua interação com as outras mulheres desse universo e também com o específico funcionamento desta sociedade em que vive.
A trilha sonora, a paleta com predominância de cores quentes amareladas, sujas e terrosas, as vazias paisagens áridas, os enquadramentos abertos e distantes, ambienta-nos numa espécie de western. A sanguinolência estetizada, quase cartunesca, põe a história a flertar com o absurdo.
Marlina é tirada de seu sossego, bulinada e estuprada por um único motivo: é mulher numa sociedade machista (qualquer semelhança, não é mera coincidência!). Ela, sagaz, vive seus dias de viuvez solitária guardando no canto da sala a múmia do marido morto, numa posição que não levante tantas suspeitas. Ela passa o tempo cuidando da casa, dos poucos bens que adquiriu com o marido (alguns animais típicos de roça) e consegue ser independente.
Não sabemos como o marido morreu, mas é possível deduzir porque ele ainda está ali. Manter a múmia dele em casa é uma garantia; o seu passe livre numa sociedade em que uma mulher sozinha não pode ter patrimônio e nem ser dona da própria vida. Ela necessariamente tem que estar casada, ter um homem para capitanear a casa e os bens; ou, ao menos é assim que Markus e os homens que sem qualquer pudor uma tarde invadem sua casa pensam. 
Para a infelicidade de Marlina, eles sabem muito bem que o marido morreu e ele não está vivo ali sentado. Para infelicidade dos invasores, porém, Marlina sabe resistir (aos abusos, que escalam rapidamente de uma simples visita indesejada para uma espiral de violência). Após cometer o crime (mesmo que fosse para se proteger e se salvar), ela tem de deixar a casa, e então sai em busca de algo que nem ela sabe – apenas precisa se livrar da cabeça de seu estuprador, que agora carrega num saco pelo deserto e pela cidade, enquanto encontra algumas personagens pelo caminho.
Ela não matou todos os homens, porém. Não só os remanescentes a perseguem durante sua viagem quando descobrem quem ela é, mas também o fantasma decapitado de Markus faz aparições pontuais. 
Através de um roteiro simples, o filme trabalha muito bem as metáforas e o discurso crítico levantado, utilizando-se de fantasia e violência gráfica o que acaba sendo um recurso eficaz para evitar ser tomado pelo proselitismo ou por um tédio narrativo – uma triste tragédia que acaba acometendo tantos filmes politicamente bem intencionados. A bela fotografia e o bom domínio de luz deixam, ainda, o filme envolvente (além de estiloso).
Fica claro que o fantasma sem cabeça que persegue Marlina é um tipo de culpa (talvez a culpa que toda mulher carregue consigo numa sociedade que a habitua a isso desde cedo, mesmo quando ela fez a coisa certa), mas ao mesmo tempo é também o espectro de um machismo agressivo que não encontra limites nem na morte do abusador; sua existência física, ou não, não é sequer empecilho.
Markus talvez seja o pior das personagens masculinas desta trama; mas os outros homens não ficam por menos. Representam arquétipos de homens tradicionais de sua sociedade, para quem rebaixar mulheres a uma espécie de ser inferior lhes sai como algo natural. Não apenas isso, mas o imperativo masculino se impõe a todas as mulheres também: há a mãe que está angustiada e aflita preocupada se o filhinho será feliz no casamento arranjado (enquanto ninguém se pergunta como se sentirá a noiva); há a garotinha chamada Topan, um nome masculino dado pela mãe, para que ela “crescesse forte como um garoto”; ou a mulher que está grávida e deve andar sozinha a estrada que corta a região semiárida sob o sol escaldante para encontrar o marido porque ele, um canastrão de primeira, não está nem aí para ela.
O único homem que não abusa de uma mulher é mesmo o marido morto de Marlina. Mas de quem nada sabemos, e representa uma espécie de passado calcificado e pesando ali no canto da sala também, figurando ao fundo, como um espectro da influência do homem sobre a vida da mulher (como dito, dizer que ainda tem marido é o salvo conduto de Marlina para manter seus bens).
Mas a própria sociedade tem um funcionamento que inferioriza os direitos e as vontades da figura feminina. Por exemplo, Marlina é completamente invisível na delegacia, enquanto é obrigada a esperar os “dedicados” policiais terminarem uma partida de sinuca para ser atendida. Ela está indo delatar o estupro e a invasão; mas não sem antes ser avisada pela amiga, de que não deveria fazer isso, pois “não ia dar em nada” e ainda iriam culpa-la por tudo.
Se não recorrer à polícia, conformada e cheia de certeza de que está dando uma boa ajuda a amiga sugere a Marlina que vá à igreja então, afinal, ela “pecou”… Marlina prontamente resiste a essa ideia e dá um choque de realidade na amiga. É claro: uma polícia que culpa a vítima de estupro e uma igreja que inculca a culpa desde cedo (especialmente nas mulheres), são apenas cúmplices em trazer a opressão e não a redenção.
No fim, Marlina não será só uma mulher oprimida que luta por reconhecimento, ela é uma Escola. Numa sociedade em que a violência às vezes não é opção, mas sim a única maneira possível de se proteger ou sobreviver, ela ensina um tipo de sororidade a outras mulheres. O final conciliador é uma bela amostra de que resistência aos imperativos de um machismo institucional assassino requer, antes de tudo, união das mulheres.
Sessões:
MARLINA, ASSASSINA EM QUATRO ATOS (MARLINA THE MURDERER IN FOUR ACTS), de Mouly Surya (95′). INDONÉSIA, FRANÇA, MALÁSIA, TAILÂNDIA. Falado em indonésio, dialeto de sumba. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 14 anos.
PLAYARTE MARABÁ – SALA 1 20/10/17 – 21:00 – Sessão: 171 (Sexta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 2 23/10/17 – 16:50 – Sessão: 406 (Segunda)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 27/10/17 – 14:00 – Sessão: 816 (Sexta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 29/10/17 – 13:30 – Sessão: 1058 (Domingo)
RESERVA CULTURAL – SALA 2 31/10/17 – 19:50 – Sessão: 1287 (Terça)
Mias informações: http://41.mostra.org/br/home/
Gui Augusto

2 thoughts on “Marlina, Assassina em Quatro Atos [Resenha do Filme]

  • 21 de outubro de 2017 em 21:50
    Permalink

    Adorei o post e fiquei super curioso com a história desta mulher, que reflecte a de muitas mulheres, não só na Indonésia. É tão bom ver um blog deste género apostando em filmes de nicho. Não sei se estreou ou vai estrear em Portugal, mas tenho de vê-lo 🙂

    Bitaites de um Madeirense Paulo Faria Design

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    • 22 de outubro de 2017 em 22:30
      Permalink

      Olá, Paulo. Ele aqui em São Paulo só chegou por meio de um festival de cinema. Fique ligado nos festivais de cinema da sua cidade, quem sabe eles levem este filme até aí! Abraço.

      Resposta

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