Rainha de Katwe [Resenha do Filme]

Conferimos a Cabine de Imprensa de Rainha de Katwe pela Disney.

Nesta sua nova produção, a Disney entrega um drama leve e agradável. Apesar de ser um mega estúdio milionário, este filme se convola numa experiência forasteira para os seus padrões, e extrai da simplicidade uma boa história – mas não deixa de lado vícios típicos de blockbusters. Já inova na própria opção do formato, ao assinar diretamente com o selo Disney um filme live-action de trama ‘realista’ (e não da sua Marvel, LucasFilm ou suas próprias animações adaptadas).
Filmada em parte em Uganda, e em parte na África do Sul, o elenco mirim é todo formado por atores novatos, ugandenses e sul-africanos – incluindo a protagonista, a atriz ugandense Madina Nalwanga, cravando com habilidade este seu primeiro crédito na carreira no cinema. Mira Nair, a diretora, é envolta de uma série de fatos interessantes: mulher, na direção de um filme de grande orçamento da Disney; quase dirigiu a superprodução Harry Potter e a Ordem da Fênix, de 2007; indiana, que não necessariamente vem de Bollywood (como seria lógico imaginar, para trabalhar em Hollywood), mas sim de uma sólida carreira no cinema autoral; foi membra do júri em Cannes, em 1990, e no Festival de Berlim, em 2002; tem laços com Uganda, história onde se passa o filme, pois nasceu lá seu único filho, e passa-se lá também um de seus primeiros sucessos, Mississippi Masala.
A história contada é a de Phiona Mutesi, uma garota ugandense, moradora de uma favela na cidade de Katwe, que teve seu destino radicalmente alterado quando descobre, através do xadrez, um objetivo de vida e um exímio talento. A ideia para filmá-la veio da própria diretora Mira após trabalhar num documentário sobre a vida, não de Phiona, mas sim do ‘coach’, Robert Katende – um desses heróis que não usam capa. Foi ele o responsável por abrir uma escola independente em plena favela e ensinar por conta própria o xadrez às crianças pobres da região. Sem verbas, incentivo ou qualquer patrocínio, lutou com os próprios recursos e o próprio suor (e lábia), até conseguir tudo isso; ao mesmo tempo passou a angariar um público cada vez maior de crianças interessadas no jogo (e na simpática caneca de mingau que ele costuma oferecer), até sua vida, seus sonhos e seu trabalho se confundirem ao ponto de não viver mais para si, mas em prol de seus “pioneiros” – como carinhosamente se refere aos pequenos enxadristas. 

O personagem de Katende, não por menos, é o segundo mais importante no filme; bem desenvolvido e central na trama, está muito bem encarnado pelo excelente ator anglo-nigeriano David Oyelowo (quem já foi de Muddy Waters a Martin Luther King Jr. no cinema. Um dos obstáculos de Katende será convencer a brava e protetiva leoa que é Nakku Harriet, mãe de Phiona. Sozinha, vivendo na pobreza e criando quatro filhos, ela terá uma resistência em permitir à sua menina caçula emancipar-se do projeto de vida que tem para ela (especialmente dada a experiência com a filha mais velha). Ela é interpretada por Lupita Nyong’o, o nome de peso aqui, até em destaque no material de divulgação (atrativo de público, após o sucesso e o Oscar, por outro papel coadjuvante, no ótimo 12 Anos de Escravidão), e quem continua não deixando dúvidas da grande atriz que é.

Constantemente o filme trabalha referências ao xadrez na ambientação e nos elementos de cena. O próprio método de ensino de Katende alia as regras do jogo a exemplos da realidade dura conhecida pelas crianças (gerando aproximação afetiva e facilitando o aprendizado). Por vezes, numa situação de conflito de difícil decisão ou desafio de uma personagem, há um tabuleiro ou peças do xadrez presentes em cena. Numa cena, uma colega ensina a Phiona o movimento de “coroamento”; a metáfora meio “duh” (a referência é enfraquecida pela obviedade) contida aqui é para nos mostrar que, pela própria natureza da jogada, no xadrez o pequeno pode tornar-se grande; ou seja, tal qual o peão (ou o “little soldier”), Phiona percorre o árduo e longo caminho do tabuleiro, até o outro lado, para corar-se, também, Rainha.

Nas duas mais importantes contendas da história (uma, decisiva para revelar à Katwe os talentos escondidos na favela da cidade, outra, no fim, decisiva para revela-los à Uganda e ao mundo), a simples e silenciosa tensão de um jogo é superlativada pelo know-how de um estúdio especialista em emocionar: na conjunção entre música, câmera e montagem da sequência, uma mera partida de xadrez toma proporções de uma batalha épica. Ainda assim, apesar da evidente tentativa de estupro dos nossos canais lacrimais, a escalada emotiva é bem montada e leve na medida certa. 
Outro exemplo no qual o drama se conjuga bem coma singeleza do momento é a cena de Nakku ganhando uma casa nova. Ou, nenhum momento do filme consegue ser tão emocionante quanto seu final, quando uma série de cenas tomam a tela nos apresentando lado a lado os atores e seus duplos reais – e uma notinha explicativa do destino de cada um. Porém, como um bom filme Disney, há de ter exploração melodramática exagerada, como a música propositadamente alta para gerar emotividade (até fora de contexto às vezes); ou os travelling de câmera, enquadrando rostos como se quisesse espancar deles uma emoção ou reação, ou passeando ao redor de uma personagem, observando-a desempenhar uma ação, como se nos explicasse didaticamente o que ela está fazendo.
Esteticamente, o filme não consegue se desvencilhar do erro de pastichizar a pobreza (como os ditos “favela movie”). Ele até tenta imprimir certo realismo entre cenário e figurinos, porém, a encenação frequentemente parece estampar na tela uma Uganda idílica, deslocada de suas complexidades sociais e da triste realidade de país miserável; e momentos quase cínicos de comercial da Coca-Cola, com direito a música alegre e estereótipo do pobre cordato, cordial e feliz. Outro problema é o uso da língua inglesa como principal, cuja parece não deixar alguns atores, especialmente as crianças, tão fluidas e desenvoltas como aparentemente estariam na língua nata.

Quanto ao roteiro, ele cria diálogos e situações bem simples e genéricas, daqueles que você pode chamar de “manjados”, para filmes do gênero. Apesar disso, as motivações das personagens são críveis; há nos momentos de altos e baixos e nos conflitos internos uma construção narrativa verossímil (quando Phiona fala “minha vida é a mesma”, num desabafo, acreditamos no seu questionamento). O que favorece uma narrativa mais sóbria e menos romantizada talvez seja o próprio fato de estar baseada numa história real (inclusive, contemporânea a nós, e ainda sem um desfecho). É verdade também que a história real cai como uma luva para a velha tara do cinemão comercial por tramas de superação, onde ele livremente, com ares de lição moral, pode incutir em subtexto o discurso ideológico neoliberal da fábula da meritocracia.

O Big Money de Hollywood abrir as portas para uma diretora, mulher, indiana e independente, já é um mérito do filme antes do filme. Se o filme em si conta com exageros musicais (e pior, maldita Disney: não posso negar que seja boa a trilha sonora) cosméticos e estéticos, ao menos seu desenvolvimento narrativo não peca tanto. E apesar do apelo melodramático e linguagem afetada, o filme possui um mérito inquestionável: levar a uma grande audiência a chance de ser confrontada com uma história minimante distinta das de hábito; ainda que contada num formato padrão. É uma interessante história para se trazer à telona, especialmente por ser menor, de uma personagem nada famosa, mas tratada em proporções que a engrandecem.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: Rainha de Katwe
Título Original: Queen Of Katwe
Diretor: Mira Nair
Data do lançamento no Brasil: 24 de novembro de 2016
Gui Augusto

8 thoughts on “Rainha de Katwe [Resenha do Filme]

  • 24 de novembro de 2016 em 01:23
    Permalink

    Que interessante a premissa do filme, a Disney mandou super bem, temas como superação num filme é lugar comum, mas o xadrez entra com um Q de diferencial e empoderamento feminino, a apresentação de atores novatos a direção de uma mulher, independente e indiana chama a atenção e claro, a trilha sonora 🙂
    Adoro a Lupita!
    Bjs Luli
    Café com Leitura na Rede

    Resposta
  • 24 de novembro de 2016 em 12:08
    Permalink

    Não tinha ouvido falar desse filme, mas adorei a premissa e a sinopse dele, parece um daqueles filmes que nos motivam e emocionam ao final né. Adorei sua resenha, muito bem escrita e soube abordar vários pontos mega importantes!

    http://www.leitorasvorazes.com.br/

    Resposta
  • 24 de novembro de 2016 em 15:33
    Permalink

    Oi Gui, tudo bem?
    Nossa, preciso dizer, sua crítica ficou muito bem escrita. Você demonstrou conhecimentos técnicos, falou da carreira da diretora envolvida e da carreira dos atores envolvidos. Além de opiniar sobre o filme. Não conhecia, como sempre descubro em primeira mão aqui no blog de vocês dicas atuais de filmes. Muito importante a atitude de Robert Katende, são nossos heróis sem rosto. Gostaria que tivéssemos mais deles no mundo. Dica mais do que anotada!!!
    beijinhos.
    cila.
    http://cantinhoparaleitura.blogspot.com.br/

    Resposta
  • 24 de novembro de 2016 em 16:48
    Permalink

    EEEi, Gui.
    Uau. Gosto muito de filmes assim, com temática inteligente. Além de ser totalmente fora do comum, pelo menos para mim, histórias que valorizam o olhar de outras culturas -que não aquelas que sempre são valorizadas-.
    Ahhh David Oyelowo e Lupita Nyong'o <3 gosto muito quando reconheço alguém que admiro nos filmes <3
    "Porém, como um bom filme Disney, há de ter exploração melodramática exagerada", sim, isso me incomoda bastante. Poucos filmes, conseguem se desvencilhar do papel construído (do dito, estereótipo) que existem em determinados países.
    Colocar a língua inglesa como a principal pesou. Mas como é feito pela Disney, meio que para padronizar de vez, né.
    Amei a resenha! Super completa <3
    Até mais!

    https://utopianuvem.blogspot.com.br

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