Projeto Flórida [Resenha do Filme]

Projeto Flórida é um filme interessante em vários sentidos: esteticamente bem resolvido e autoral; uma paleta de cores diferenciada e bem utilizada; um diretor novo e promissor – que já se provou muito capaz em seu Tangerine, de 2015; um protagonismo único, de uma atriz mirim tão boa que é capaz de segurar sozinha o filme quando é preciso (com 6 anos de idade); e um elenco, no geral, muito competente, com poucos (e bons) rostos conhecidos e uma maioria novata, igualmente ótima, em especial a atriz coadjuvante, retirada diretamente das timelines do Instagram.
O diretor e corroteirista Sean Baker vem mostrando que possui visão, capaz de criar um universo próprio e robusto, desde 2000 abordando histórias dos subúrbios dos EUA protagonizadas por personagens outsiders do sistema (com 5 longas para o cinema no currículo) e ambientadas numa atmosfera e numa estética que parecem compartilhadas. Ele assina, além da direção, também o roteiro, a produção e a edição do longa.
É possível em Projeto Flórida já se vislumbrar uma assinatura autoral e um trabalho original, aqui Baker parece delimitar vez por todas seu estilo e entrega possivelmente sua obra-prima até então (um longa que, na mente dos criadores, já estava em gestação há mais de 5 anos). O resultado agrada bastante, e tem potencial de agradar amplas audiências, o que é um outro trunfo: um filme diferente, “alternativo”, mas de diálogo mais abrangente com o público (o que nem sempre é uma prerrogativa desse tipo de cinema).
Essa abertura maior vem das próprias influências do realizador; como ele mesmo conta, trata-se de um Os Batutinhas moderno, ou algo embebido na fonte da série de 220 curtas-metragens, Our Gang, datada dos anos 20 aos 40, retratando aventuras de crianças pobres vivendo no contexto de um país de primeiro mundo, inclusive, da crise de 29 – econômica e socialmente avassaladora para os EUA.
Aqui estamos diante de uma história da vida, uma história das pessoas comuns, dos ‘lowlives’, dos de baixo. Nossos protagonistas também são crianças, e se engana quem pensa que são os típicos estereótipos utilizados para levantar a bandeira crítica social (negros ou latinos); não, há crianças brancas norte-americanas natas (e gera até um certo estranhamento), o que por si só é um discurso do filme, advertindo que o problema social nos EUA abrange a todos, e não só uma parcela da população (a crise atual é sistêmica, mais do que identitária).
Com isso Projeto Flórida tenta apresentar na tela os Estados Unidos real, um país muitas vezes envolto numa aura mágica de ‘wishful thinking’ (especialmente por parte de quem não mora lá, como por exemplo “alguns” brasileiros, daqueles que admiram Miami e amam a Disney – que, aliás, ganham menção honrosa neste filme), tendente a desviar o foco de observadores alheios, conhecedores apenas dos EUA de dentro do perímetro do Reino Mágico (o Magic Kingdom, parque da Disney, na Flórida). 
Enquanto multidões de turistas e pessoas do mundo todo passam por ali mensalmente para experimentar um breve (e caro) momento lúdico e fantástico que os alivie do peso da existência, pessoas que moram nos arredores mesmo sentem esse peso diretamente, na carne, dilacerando-os dia após dia. É esse contraste precisamente que o filme posiciona em seu centro para poder desenvolver a história – e que é muito bem construído dentro dela, com várias sutilezas espertas e um senso crítico cáustico, mas levemente cômico.
As personagens de ‘Florida’ não dialogam com essa fantasia, elas dialogam somente e inevitavelmente com o peso da vida real. Na verdade, o público que pode pagar por alguns dias “mágicos” num parque temático do maior estúdio de entretenimento do mundo é bastante restrito (e abastado), e muitas vezes é só esses Estados Unidos restrito o vendido pela publicidade oficial e pelas agências de turismo, levando a crer que lá tudo é belo e mágico como na Disney e todos são “bem de vida” como esse público.
O único ser, saudável, e ao mesmo tempo capaz de viver num mundo paralelo fantástico ante a realidade cruel e fria é uma criança. Projeto Flórida é solene e sensível ao trabalhar em primeiro plano do discurso textual simplesmente uma aventura pueril, sem exageros dramáticos ou estéticos, e consegue, ao mesmo tempo em que deixa de plano de fundo as questões sociais complexas que aborda, fazê-las emergir tão bem na tela e com conteúdo crítico intacto. Em outras palavras, ele consegue abordar uma história leve, uma aventura infantil, sem se tornar piegas, enfadonho, ou perder a maturidade do texto.
A estreante atriz mirim, Brooklynn Kimberly Prince, desempenha um trabalho impressionante aqui (consegue emular o que ela é de verdade, uma criança, da maneira mais verossímil possível – o que é muito difícil). Ela empresta à personagem uma personalidade e um peso marcantes, e torna o roteiro e a direção capitaneados por adultos muito mais próximos do universo de uma criança de seis anos (a protagonista, Moonee). 
Os trejeitos, os comportamentos, a inconstância e as bizarrices de que só crianças são capazes são retratados de forma natural. Não só a atriz principal, mas todas as crianças coadjuvantes cumprem bem seu papel. O que só melhora na relação entre as personagens é que o elenco adulto é competente o bastante para fazer a transição entre esses dois universos tão díspares ser também natural. Em especial Willem Dafoe (que dispensa maiores comentários), encarnando Bobby, o gerente de hotel durão mas com coração mole, e Bria Vinaite, completamente nova no cinema, descoberta por Sean Baker no Instagram, perfeitamente encaixada no papel da jovem mãe Halley.
O trabalho de câmera e a fotografia (assinada por Alexis Zabé, quem resume perfeitamente o espírito deste filme ao comentar sobre a sua estética: um sorvete de ‘blueberry’ com um toque azedo) também colocam o espectador numa relação de proximidade dos universos das duas faixas etárias de personagens, especialmente pela câmera semi-subjetiva sempre seguindo os atores na altura condizente com sua estatura. Uma forma de filmar que deixa toda a ambientação mais caseira e documental, nos sentimos mais próximos daquelas histórias e nos tornamos mais empáticos também.
Estamos diante de um filme bastante contemplativo. O que estamos assistindo é o dia-a-dia de crianças fazendo suas “artes” e o de adultos tentando sobreviver. Só em dado momento, no segundo ato do filme é que uma personagem passa a ocupar o posto de antagonista e começamos a identificar mais ou menos uma construção narrativa clássica. E essa clássica dialética herói/vilão é até fulcral para os acontecimentos do desfecho, mas desnecessária para conduzir o drama do filme. 
A narrativa já funcionaria bem naquela mesma dinâmica dos curtas Our Gang, ou de Conta Comigo, de 86 (filme baseado num conto de Stephen King): já nos entretemos com a mera representação de crianças brincando ou se metendo em enrascadas, pois seu mundo por si só é mágico e criativo e sua curiosidade sempre explora o inesperado de modo a extrair grandes aventuras do cotidiano mais banal, sem a necessidade de uma construção tradicional de jornada do herói para empurrar a história.
Na maior parte, aliás, o longa não constrói emoções dramáticas e tenta se distanciar dessa linguagem de exploração emotiva. Nem sequer uma trilha sonora é tocada (exceto por um breve momento onírico, acompanhado de uma linda e melancólica versão orquestral do clássico da disco, Celebration, de Kool & The Gang). Se há alguma explosão emocional das personagens, traduzir isso para a tela fica por conta da montagem.
A montagem, dinâmica, acompanhada de cortes certeiros tornando o filme ainda mais agradável e diferente (especialmente por alguns planos com opções de ângulos e movimentos de câmera bem estilosos), escolhe acelerar, alterar o andamento de certas sequências de planos no filme (habituado àquela impressão mais de contemplatividade), de modo a suscitar com força a angústia, a felicidade ou outros sentimentos das personagens, prescindindo de maiores recursos narrativos para isso.
Na trama, Halley cuida de sua filha Moonee passando seus dias num hotel (chamado “motel” nos EUA) barato, ocupado como se fosse uma pensão por uma série de pessoas na mesma condição social que ela. Halley sobrevive entre pequenos bicos e pequenos golpes, totalmente dependente das sobras de uma economia local voltada ao turismo, graças ao parque temático logo vizinho. 
A inspiração veio do co-roteirista e produtor Chris Bergoch, que por muito tempo viajou pela principal via que conecta a Flórida e notou, em certa altura da Irlo Bronson Memorial Highway (US Highway 192), próxima à Disney, um impressionante arredor de pobreza e dificuldades sociais, retratado justamente pelo fato de que nos hotéis de beira de estrada estavam hospedados não turistas, mas famílias, que moravam lá regularmente.
O cenário mudou muito naquela região vizinha ao “Reino Mágico” justamente depois da crise econômica de 2008 (que perdura até hoje, refletindo no esgarçamento de condições sociais, de trabalho e de moradia), que ao invés de encher os hotéis mais baratos com turistas como antes (esses, agora, só uns poucos hotéis caros, próximos dali também), passou a abrigar um cliente até então impensável: famílias de todos os matizes da classe baixa norte-americana, mães solteiras, pais desempregados, famílias sem moradia, freaks e desajustados sociais, independentemente da idade, origem, cor ou credo.
Esse cenário, de cores vivas, mas de tom melancólico (um uso bem cuidado da paleta de cores servindo à proposta do filme), suscita a desolação de um tempo perdido, décadas atrás. Remanescem escombros, empreendimentos imobiliários de quando havia esperança abandonados, hotéis e grandes lojas de souvenir guardando nas paredes e na decoração memórias de tempos áureos, atrações que hoje soam aleatórias sobrando para o lado de fora dos muros da Disney (como o icônico passeio de helicóptero); todas coisas que antes serviam ao intenso fluxo de capital aplicado em busca de sonhos e agora restam ali, sem sentido, sem motivo, sem glamour, como elefantes brancos, anunciando imanentemente: o sonho acabou.
Às pessoas que vivem à sombra dos escombros enferrujados de Mickey Mouse a vida (nesse sistema) não reserva a fantasia, só a dura realidade. Atenuando essa dureza, só o Magic Kingdom infantil, que não depende das paredes de concreto pré-fabricado e nem de objetos de fibra de vidro, MDF e ferro compondo um cenário, mas sim recria a partir de qualquer parede, qualquer objeto do mundo, seus próprios cenários imaginários, onde não há limites (físicos ou virtuais). Muitas vezes a falta de limites pode significar consequências, mas consequências essas que as crianças não entendem e que são resolvidas no mundo bem mais desinteressante dos adultos; na minha humilde opinião? De maneira muito mais imatura do que uma criança resolveria.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: Projeto Flórida
Título Original: The Florida Project
Diretor:  Sean Baker
Data de lançamento: 01 de março de 2018

Gui Augusto

3 thoughts on “Projeto Flórida [Resenha do Filme]

  • 1 de março de 2018 em 22:13
    Permalink

    Fiquei um pouco na dúvida sobre qual era a real mensagem que o filme queria passar, senti que tudo era jogado ao espectador sem ter uma profundidade maior e não consegui sentir empatia pelos personagens.
    Achei também que o personagem de Willem Dafoe foi um pouco mal aproveitado…
    Mas adorei a resenha e conhecer a sua visão sobre o filme =D

    Beijão
    Toca da Lebre
    Universo DC 52

    Resposta
  • 2 de março de 2018 em 03:43
    Permalink

    Gostei muito da sua resenha, bem completa e informativa. Fiquei meio confusa quanto a história, já vi filmes com esse ator e gostei bastante, mas não sei se veria este! ❤

    http://www.kailagarcia.com

    Resposta
  • 2 de março de 2018 em 06:50
    Permalink

    Olá,
    Essa menina é adorável.
    Uma bela presença em cena e torço para que tenha um ótimo futuro nos cinemas.

    até mais,
    Nana – Canto Cultzíneo

    Resposta

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