40ª Mostra Internacional de Cinema: Nunca Vas a Estar Solo

Conferimos a Cabine de Imprensa de Nunca Vas a Estar Solo.
O filme chileno é o primeiro longa-metragem do diretor Alex Anwandter, novato na cena – e participa da competição Novos Diretores da Mostra. De tom pesado e final nada conciliador (e uma poética cena final), a trama aqui é a história de Pablo (Andrew Bargsted), um garoto gay de 18 anos, no desabrochar dos hormônios, descobrindo a sexualidade e também a pulsão fascista do mundo. Pablo vive com seu pai, Juan (Sergio Hernández), um idoso solteiro, eterno trabalhador e cansado e apagado, um típico representante das massas de trabalhadores das classes C e D, ou classe média ascendente, pelo mundo afora. Digo “mundo afora”, pois apesar de o filme ser chileno, este estereótipo é muito familiar para nós brasileiros e, entretanto, não se limita a estas duas realidades sociais, sendo uma personagem do próprio capitalismo, em todo o mundo do trabalho e do precariado.
Este indigno sistema financeiro e social recebe críticas dissolvidas pela narrativa do filme. A exploração no mundo do trabalho, a exploração da imagem e a publicidade, a monetização da vida e da morte na área da saúde, o sonho do empreendedorismo (e os caminhos muitas vezes tortos para sua realização), a ganância e obliquidade dos planos de saúde e do sistema privado, críticas políticas ao Estado (e ao Chile – “ser chileno”), são todas questões que além do preconceito, da homofobia e do ódio, serão abordados por este longa – na maior parte em espertas linhas de diálogo justapostas naturalmente na história.
É possível separar o longa em duas grandes partes: numa primeira, Pablo nos é apresentado, bem como seu relacionamento com o garoto Félix (Jaime Leiva) e seu companheirismo com a melhor amiga, Mari (Astrid Roldan), ressaltando-se a sua posição na comunidade (um bairro periférico de uma cidade chilena) perante os outros habitantes e dada a sua condição sexual e social; numa segunda, é a vez do filme seguir o velho pai, Juan, na sua trajetória de redentor do filho ao mesmo tempo em que vê a real face das suas relações sociais e profissionais, como com a vizinha Lucy e o amigo Pedro, e tal qual o filho, notará mais evidentemente a perversidade do mundo. Os dois personagens têm em algum momento o desvelamento deste mundo ao redor: compreendem da pior forma possível que ele é cruel, e ao cabo, sucumbem – cada um a sua forma.
Permeado por belas cenas de uma cidade, a cada vez feia, sufocante, mas bela, sempre fosca e nublada, conduzindo o tom de tempos sinistros – não por acaso, os nossos, pois somos contemporâneos desses personagens, e em certa medida assistimos ou sofremos na realidade tudo o que se passa com eles – o filme é todo marcado por uma iluminação escura e uma fotografia sombria. É embalado por uma trilha sonora caprichada, com músicas diegéticas sempre bem colocadas em cena. A premissa é forte e muito boa, mas o enredo tem um potencial maior do que o que é mostrado; o andamento vai muito bem até pouco mais da metade, porém, no bloco final, a narrativa perde-se bastante nas resoluções de roteiro.
Apesar de tudo, há alguns bons diálogos e cenas de rica significação (dizem muito, apenas com silêncio e imagem – como a de Juan andando pelas ruas da cidade ou dos sinistros manequins o vigiando em diferentes momentos). É sintomático o diálogo entre Juan e seu amigo Pedro numa festa caseira, entre banalidades e conversa sobre trabalho (a almejada sociedade), este comenta sobre os coreanos, observando sua disciplina de trabalho e o quanto ela é superior a deles na fábrica de manequins onde Juan trabalha, e faz a ressalva (daquelas dignas de lógica de familiar coxinha na ceia de natal), “mas eles nunca vão nos superar em ‘humanidade’”. Sim, a provocação é clara e aberta, a ironia veiculada por meio da inocência preconceituosa do personagem é contra o próprio modo de vida ocidental; e é essencial este diálogo estar logo numa das primeiras sequências do filme, porque ao seu longo, vários eventos irão provar o contrário do rifão de Pedro (inclusive, o próprio irá contrariar-se) e revelarão, sim, o nível de desumanidade no qual estamos todos imersos.
Essencial também é o diálogo entre Juan e a médica Ana (da ótima atriz chilena, Antonia Zegers) no hospital. Ana é rude e sincera, por opção não tem filhos e acusa Juan de se achar mais importante do que o resto da humanidade “só” porque tem filho e seu filho está sofrendo; por sua vez, Juan indaga a Ana se ela não se envergonha de cobrar preços exorbitantes para salvar a vida das pessoas (afinal, de sua razão, um sujeito da classe C/D, ele não tem mesmo acesso fácil a essa “dádiva” tornada um bem circulante no mercado: a saúde). Ana então rebate, citando o trabalho de Juan na fábrica de manequins: “e você é o responsável por fazer nós mulheres nos sentirmos gordas e infelizes com nossos corpos?” E de sua perspectiva, feminina, ela também não está inteiramente errada; e por isso esse diálogo é tão importante na construção narrativa, pois mostra os sujeitos opostos num debate inglório como colocados na mesma situação, antagonizados por algo bem maior e disforme, não identificável: o próprio sistema.
Um Estado falido e burocrático só contribui para o capitalismo selvagem continuar a corroer as vidas humanas. Esse mesmo Estado é negligente e inútil também na hora de redimir o destino de Pablo, ao pelo menos fazer-lhe um pouco de justiça. Não há justiça, não há homenagens, não há salvação. O destino de Pablo e Juan, dadas as suas peculiaridades e o lugar econômico que ocupam na sociedade, já é certo: caso tentem sair da sistemática e se emanciparem, eles não possuirão esse direito, e a única saída é morrer ou fugir. 
A temática gay aqui é tratada com respeito e a mensagem que o diretor quer passar é muito mais eficaz, por exemplo, do que no brasileiro Mãe Só Há Uma de Ana Muylaert – ao qual fui remetido algumas vezes. A mensagem é passada com competência e seriedade (sem a vexaminosa caricatura feita no outro filme), porém mesmo este Nunca Vas a Estar Solo acaba incorrendo em alguns clichês comuns (feminilidade como expressão homossexual masculina) e estereótipos errôneos (associação ao balé, como fica sugerida na cena da aula de balé). Um movimento muito interessante desse filme é usar os diálogos para trucar lugares-comuns da opinião corrente preconceituosa e leviana de uma sociedade cada vez mais esquizofrênica; naquela realidade, as personagens que constantemente falam em “princípios” e um manjado discurso moralista (sabe aquela estorinha do “homem de bem”, então…), são as que menos o refletem.
Trailer:

Primeira exibição na Mostra:
Dia 20/10 – 20:00 – Reserva Cultural 2
Outras datas:
Dia 21/10 – 15:30 – Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 6
Dia 22/10 – 19:20 – Cinesesc
Dia 24/10 – 18:00 – Espaço Itaú de Cinema – Augusta Anexo 4
Dia 29/10 – 14:00 – Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Vila Lobos

Gui Augusto

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