Human Flow [Documentário]

A temática da imigração de refugiados de guerra mais do que nunca é tema atual. Human Flow não é só um filme, esteticamente falando, este documentário é uma obra de seu tempo e nele ficará calcificada, para um mundo futuro talvez testemunhar essas histórias aqui contadas. Apresentado na programação da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ocorrida entre 19 de outubro e 01 de novembro deste ano, agora no dia 16 de novembro ele estreia no circuito das salas brasileiras.
O documentário, que é o primeiro longa-metragem dirigido pelo artista-ativista chinês Ai Weiwei, através de uma dinâmica razoavelmente fluida, não muito cansativa e angulações e enquadramentos esteticamente poéticos nos revela histórias de refugiados de diversas guerras ao redor do mundo, mas não só de nossa década. Weiwei também revisita as guerras e imigrações de outros tempos, incluindo aquelas ainda não terminadas, como a questão palestina em Gaza ou o conflito na fronteira entre México e EUA.
Mais antigo ainda: Weiwei escala seus talking heads para proferir frases de impacto e bons diálogos, e um deles nos lembra justamente que a história da humanidade se iniciou com um êxodo (um ‘human flow’, portanto) há 140 mil anos, ironicamente, saído da África.
Este documentário não é só um filme porque o diretor imprime nele o caráter bem marcado de obra política. Habituado a outras formas de expressão artística que não exclusivamente a cinematográfica, o ativista chinês por vezes entra em seu documentário. Ai Weiwei, em forma de manifesto empresta seu corpo e seu rosto aos fins de sua obra, como normalmente faz; assim, ele participa junto dos objetos documentados, gosta de se tornar parte daquelas vidas e culturas, participar nem que seja pelo momento de filmagem daquela realidade que ele documenta, tornando-se só mais um no meio dos corpos e rostos anônimos em luta e resistência.
Dentre os depoimentos interessantes dos talking heads, o líder libanês Walid Bey Jumblatt, ex-líder da seita Druze, relembra-nos a primazia do diálogo sobre a violência. Ele cita o próprio passado pregando violência e extremismo como forma de demonstrar que o debate de ideias é a melhor solução. Também ele nos faz refletir se toda essa hecatombe que varre o mundo hoje, de fluxos migratórios massivos fugindo de uma violência colossal, não seria uma abertura única para um mundo mais amistoso, empático, comunitário, para olharmos ao diferente como irmão e tentar a união como forma de construir um mundo melhor. A oportunidade, trágica como ela se apresenta, está em voga agora e é daquelas que a história dá uma a cada cem anos ou mais; diria Nicolau Maquiavel: o efeito salutar dos conflitos.
Outro depoimento afirma “ser refugiado não é mero status político”, é na verdade a condição mais triste e degradante que um ser humano pode experimentar; ele perde o lar, todas as suas posses, a família, a própria terra natal, a dignidade, e tudo só por conta de uma violência totalmente alheia a si e gratuita, inesperada e repentina. Ironicamente, esta declaração serve de alerta ao próprio Ai Weiwei; ele, quem ganhou fama como um iconoclasta destemido tendo desafiado as autoridades chinesas e passado 81 dias preso em 2011, fez disso desde então uma bandeira política que já transcendeu a mera denúncia e tornou-se lucrativa e conveniente oposição ideológica à China, sendo aproximado de interesses bem ocidentais que o festejam por isso (e não por usa obra); ele, quem já se torna um ícone de adoração entre rodinhas elitistas de arte por todo o ocidente, valendo-se desse status político como uma commodity; ele, cuja uma das obras políticas mais famosas (“Vasos Coloridos”) era avaliada em 2014 em R$ 1 milhão de dólares. Ai é bem o tipo de artista criticado em outro filme dessa 41ª Mostra, “The Square”. Felizmente, esse seu proselitismo contraditório não contamina a narrativa de ‘Human Flow’.
A viagem para a qual o diretor nos leva é muito mais universal e atemporal. Ele vai em Burma conhecer um “povo sem pátria”, mesma categoria de povo que vai às imediações entre Iraque, Irã e Turquia filmar, o povo curdo; também vai da Síria a Jordânia, de Israel a Palestina, da Turquia ao oriente médio, da Turquia a Europa; da Grécia a Europa Oriental; do México aos EUA. Ele atravessa o oriente médio, a África, chega a América, conduz-nos a tantos locais para apresentar de perto a injustiça sofrida pelo refugiado, mas imaginamos (e sabemos) quantos mais ainda faltaram visitar (e o filme já tem 2h20). Muros, cercas de arames farpados, olhares frustrados de massas de seres humanos (sempre, absolutamente sempre, seja aonde a câmera vá, na média dos milhões, milhões…). Sonhos, esperanças, um apego ultimado à vida e a sobrevivência perpassam também essas massas.
Às imagens, Weiwei provocativamente adiciona trechos de notícias de jornais, declarações oficiais, textos de documentos legais ou acordos diplomáticos, que ora contrapõem a tragédia da tela, produzindo um efeito de ironia (ou escárnio, de quem produziu essas palavras); ora corroboram a urgência da realidade denunciada pela câmera, como a bela adição escolhida a dedo de poemas curdos, sírios, palestinos, persas etc. (leve seu caderninho de anotações, pois pode ser enriquecedora a experiência desse documentário).
E há camadas mais sutis, que demandam um pouco mais de reflexão: como terminar o filme com a declaração de um astronauta sírio, mais sincera e mundana possível. Não bastava ser um astronauta para falar do estado em que se encontra a Terra, Ai Weiwei teve a sagacidade de querer um de nacionalidade síria, onde fica o epicentro da maior tragédia humana recente.
Como a realidade apresentada não é romantizada (e nem romantizável) e também não tem muito ali a se adicionar acerca de uma apresentação visual dramaticamente construída (o que seria até um desrespeito) para envolver o espectador, no geral o documentário parece uma longa reportagem investigativa jornalística. Suas diferenças são só mesmo a maior liberdade criativa permitida pela linguagem cinematográfica e o olhar poético atrás da câmera, que crava planos reflexivos e sutis, compondo a encenação sem se aproveitar ou explorar com sensacionalismo barato o sofrimento alheio.
Assistir a este filme e saber também do trabalho voluntário e engajado que algumas pessoas empreendem para fazer algo pelos que enfrentam o sofrimento absoluto, o esforço de privilegiados para dar a mão a irmãos totalmente desfavorecidos, incita-nos um pouco de culpa, conclama-nos por uma tomada de posição. O próprio Ai Weiwei é uma dessas pessoas, nesta que possivelmente é a sua melhor e mais sincera obra artística desde a primeira (talvez ele devesse continuar no mundo do cinema). 
E também conclama-nos à indagação: se um filme desses rodando festivais, tornando estética uma questão social e política, enquanto nós ali como espectadores passivos apenas consumimos um espetáculo, não seria tão ineficaz quanto nada? Porém, talvez doar 2h20 de nosso tempo para conhecer essas histórias seja o mínimo que muitos de nós podemos fazer, e já representa ao menos a eficácia de despertar nossas consciências para o fato. Não tenha dúvida: já é alguma coisa; e isso é válido.

Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título:v – Não exite lar se não ha lugar para onde ir
Diretor: Ai Weiwei
Data de lançamento: 16 de novembro de 2017



Gui Augusto

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