Scary Mother [Resenha do Filme]

Em tempos de Mãe! (Mother!), de Darren Aronofsky dando o que falar no cinema, a jovem (27 anos) diretora georgiana Ana Urushadze traz às telas uma mãe declaradamente assustadora. A mamãe assusta, no caso, sua família, porque sua potência de liberdade é tão forte e tão grandiosa, que dá medo: e o medo pode provocar reações adversas nos outros.
Figurando na competição “Novos Diretores” da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Scary Mother, a escolha da Geórgia para disputar o Oscar, e que já faturou prêmios nos festivais mundo afora, incluindo o de Locarno, é de fato um fenômeno. Tal qual a protagonista do filme, Ana parecia ter essa obra contida com uma pulsão explosiva dentro de si, porque sendo seu único crédito no cinema (primeiro filme, e primeiro roteiro), ela estreou como um cisne abrindo suas asas: com perfeição e esplendor inesperados.
A mãe que Ana Urushadze trás para contar a história é Manana (Nato Murvanidze, a atriz que está espetacular no papel). Na faixa de seus 50 anos e uma vida dedicada à família, ao marido e aos filhos, Manana nunca teve uma vida só sua, uma liberdade só sua. Ela só vem a descobrir isso quando obsessivamente escreve um misterioso livro que é muito importante para si, e a família apoia, e seu amigo e editor considera uma obra-prima.
A família, e principalmente seu marido, Anri (Dimitri Tatishvili), só apoia Manana até descobrir o conteúdo do livro. O editor, Nukri (Ramaz Ioseliani, também o ator entregando um trabalho extraordinário), por outro lado oferece a Manana até um refúgio caso ela queira se exilar de sua família, pois considera a amiga uma gênia em potencial – e nunca sabemos as reais intenções de Nukri para isso, se a predileção pela obra, ou a contida paixão pela autora.
Contida, porém, é Manana. Ela é como uma represa, de uma barragem prestes a explodir. É tão grande o volume de coisas que tem guardadas dentro de si e tão poderosa sua força, que quando vaza nas páginas de seu livro, ela bota toda a vida que construiu em 50 anos abaixo. Tão explícito e violento é seu desejo de liberdade, que ele é considerado pornográfico, impróprio, para o olhar vulgar e conservador de uma sociedade que não está acostumada a expor verdades e está habituada demais a suas prisões morais.
Os sentimentos de Manana não são claros nem pra ela. Aos poucos e sem ter consciência disso é que ela vai descobrindo que o livro que escreve e julga ser uma ficção é mais autobiográfico do que ela queria ou que ela suspeitava. Quando a verdade vem à tona inclusive para si, ela decide seguir em frente com a obra; então ela e o marido ficam de lados opostos, a mão amiga de Nukri ela aceita, e a espiral de tragédias está só começando, com um único desfecho possível: a devastadora liberdade de Manana.
O filme passa todos esses dados para nós de uma maneira magistral através dos detalhes. Detalhes como uma luz explodindo em meio a personagens felizes e uma cena que não tem motivos para ter tensão, já logo no início do filme demonstra que alguma coisa não está bem ali. E então começamos a notar desde já que Manana não está feliz, apesar dos esforços do marido (que prefere se negar a admitir a insatisfação e o tédio de Manana).
Anri é inconveniente, dominador, mas não abusivo de uma forma violenta. Ele tem sua concepção de vida. Sempre quis formar a família que formou e ter a mulher que tem, ele só não estava ciente dos sentimentos da mulher quanto a isso. Mas nem ela também estava. Quando ela começa a sair do torpor, ela sai feito um monstro com asas de morcego, um humanoide meio deformado e assustador dos contos infantis que ela ouvia; torto, porém livre e independente. Suas asas são sinistras, mas o permitem voar.
O marido se desespera aí, ao ver que o modelo ideal que sempre construiu para a mulher, começa a ruir; e quando começa a perceber que a sua vontade nem sempre foi a mesma vontade de Manana. E ele, mais uma “vítima” assustada com a assustadora potência de liberdade da esposa, ouve atônito e sem reação o sonho da mulher: ela narra catatônica os fatos, como se ainda estivesse sonhando sonâmbula, contando que de novo virou a terrível criatura com asas de morcego e saiu voando pela noite, deixando metade de seu corpo na sacada do apartamento; e o marido surgia e colocava fogo na sua metade, quando então ela soube que estava fadada a “perder toda a sua força e cair”. 
A explicação do sonho (além de um momento poderoso na tela, um dos pontos altos do filme – que tem uma porção deles) é a descrição exatamente do que ela sente, e não sabe dizer, e de como ela vê a figura tolhedora do marido, mas não sabe acusar; ele, entretanto, parece compreender, e em sua última medida desesperada para salvar o seu ideal de perfeição e de família (e continuar mantendo a esposa presa no seu ciclo) é dar um fim à obra de Manana.
O processo de autodescoberta tampouco é aliviante para a mãe. Manana vai se deformando espiritual e fisicamente enquanto escreve seu livro, a progressão do filme é a progressão da sua degeneração física. Quanto mais perto ela fica de ser livre, mais suas energias vitais são sugadas para dentro das páginas de seu livro. E, de novo, os detalhes visuais nos contam tudo.
A diretora tem um olhar profissional e poético sobre a história que quer contar. Ela, com sua equipe de fotografia, sabe muito bem explorar os recursos visuais, utilizar a luz e principalmente a cor a seu favor. Estamos todo o tempo dentro de um filme que é o universo exterior, de uma cidade na Geórgia, do apartamento de Manana, da pequena livraria de Nukri, mas também é o universo interior psicológico da mulher.
A paleta de cores acinzentadas, sempre com tons melancólicos e cores frias (só encontrando alento no forte vermelho do quarto onde Manana se exila: o vermelho do conflito, o vermelho da criatividade, o vermelho do amor e da libertação), ou o estranho apartamento de concreto batido, todo cinza, formal, duro, frio, com apenas uma sacada semioval por onde Manana vê o mundo às vezes, são a própria significação do que ela está sentindo.
Os diálogos e os conflitos do filme são conduzidos também de forma primorosa pela diretora. O ritmo pode ser um pouco lento às vezes, mas de forma alguma é algo contrário à narrativa. O desfecho talvez esfrie um pouco as coisas. Não encerra a história com a mesma desenvoltura geral, mas ainda assim é uma solução justa, condizente com o enredo e a proposta. Satisfaz.
É no desfecho que os toques finais da obra de Manana são acertados (num acerto de contas familiar). O tradutor do livro é seu próprio pai, Jarji (o veterano ator Avtandil Makharadze; outra bela atuação neste filme), com quem ela, enquanto escritora e editora de longa data, sempre trabalhou; mas o velho não sabe que agora o livro que traduz é o da própria filha, e muito menos desconfia que seja uma obra autobiográfica – que revela detalhes também do passado de Manana, e da relação com o pai e a mãe já falecida.
O fatídico livro de Manana revela, então, desde quando ela estava de verdade sentindo-se presa; compreendemos que o livro funciona psicologicamente para sua autora tal qual uma sessão de regressão, só que empreendida de forma consciente e sem acompanhamento. Apesar de ela descobrir aos poucos e não de pronto o quanto o livro é um retrato de si, ela consegue sentir isso; e conforme sente, vai se deteriorando sem saber por que.
A cena final quando finalmente o tradutor encontra “o escritor” do livro para sugerir alguns ajustes, o ajustado é ele. Descoberta a “farsa”, ele desanda a revelar expositivamente (para o espectador também) toda a trama real do livro da filha (ela é a “mãe assustadora” – “scary mother” –, mas é também a filha).
Se antes para o tradutor aquele livro era digno da excelência de um Dostoiévski (detalhe: ele pensava ser um homem o autor), quando ele sabe ser obra de uma mulher, e que é sua filha essa mulher, ele passa então a fazer advertências, a relativizar, explanar qual o lugar da filha… Ela, silenciosa, ouve; um olhar curioso e desafiador, fisicamente recuperada, mas renovada (não é a mesma Manana), e um leve sorriso no canto da boca dão a entender que sua obra está completa, e ela está satisfeita. Ela colocou para o mundo tudo o que queria colocar. Um pai assustado sai de cena, e uma Manana livre fica na mesa, reflexiva; de que sua vida talvez esteja só começando.

Sessões: http://41.mostra.org/br/encontre-as-salas/

SCARY MOTHER (SCARY MOTHER), de Ana Urushadze (107′). GEORGIA, ESTÔNIA. Falado em georgiano. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 12 anos.
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 2 19/10/17 – 17:15 – Sessão: 51 (Quinta)
PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA 21/10/17 – 14:00 – Sessão: 264 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 24/10/17 – 17:00 – Sessão: 476 (Terça)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 27/10/17 – 19:00 – Sessão: 829 (Sexta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 6 29/10/17 – 17:10 – Sessão: 1085 (Domingo)

Gui Augusto

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