Much Loved [Resenha do Filme]
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Conferimos a Cabine de Imprensa de Much Loved. |
O novo filme do franco-marroquino Nabil Ayouch estreia nas salas brasileiras trazendo no currículo uma passagem pela Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em 2015, e algumas sérias polêmicas no Marrocos, locação da história e paradigma de sociedade especificamente criticado pelo filme. Um longa-metragem de roteiro simples, mas de montagem interessante – repicada e dinâmica (pulando algumas dramatizações, diretamente para conclusões) – Much Loved traz a história de três prostitutas e, acima de tudo, amigas, que ganham a vida nas ruas do Marrocos e dividem um apartamento, enquanto têm a ajuda e a proteção de um fiel taxista. A narrativa explora as dificuldades enfrentadas por personagens marginais num país periférico do capitalismo e de tradições conservadoras e religiosas.
Noha (Loubna Abidar), a “rainha das putas”, como ela mesma se descreve, chefia o grupo, também composto pelas bravas Randa e Soukaina (e mais tarde também por Hlima, após um belo ato de sororidade, numa cena simples e visceral, em que as meninas acolhem esta inesperada quarta integrante). Noha é uma mulher forte, mas um ser humano já disforme, retalhado, que tal qual o monstro do Dr. Frankenstein, tornou-se um monstro social, moldado pelas algúrias da marginalização e opressão; ela é um pedaço de tudo: feminista pela própria construção da personagem e pelo caráter de lutadora e guerreira, mas repercute duramente imperativos machistas para com as amigas; prática e pragmática, tornada assim pela urgência e necessidade do mundo, mas também idealista e sonhadora (muitas vezes freada pelo pragmatismo ou pela adversidade mesmo, dada a sua condição de miséria moral e material); ela é mãe, é filha, é pecadora, é santa, é amante e “é puta” – como diria Meredith Brooks no ótimo hino pop/rock de empoderamento feminino, “Bitch”.
Juntamente com as garotas, vive ainda uma figura paternal, um macho diferente dos machistas que as rodeiam e alheio ao interesse meramente de explorá-las. Saïd (Abdellah Didane), taxista e “motorista particular”, só se alia a elas em função também de compartilhar a mesma experiência de vida na marginalização, é também uma espécie de cafetão involuntário, melhor dizendo, um cafetão por adoção, pois é clara a afeição das meninas por ele. Apesar de ele receber repasses de dinheiro do trabalho delas, ele não é um lenão e seu interesse não é subjugá-las, e sim estar COM as garotas. Porém Saïd também trabalha para elas, e assim todos convivem numa relação de mutualismo, para definir da melhor maneira.
Uma ficção com conteúdo de crítica social é sempre um trabalho difícil de fazer. Um cuidado a se tomar é o exagero ou a caricatura daquela realidade que se está representando; Much Loved insere situações demais e por vezes não as desenvolve, ficando apenas a menção pela mera menção, parecendo faltar tempo para a problematização de algumas questões, podendo, por isso, soar superficial a construção de alguns arquétipos e a inserção de alguns clichês na narrativa (que por si só não são criticáveis – pois, clichê não é sinônimo de baixa qualidade). Para exemplificar, menciono o das personagens dos árabes, aqui sob o signo do macho opressor, tanto o psicopata, quanto o homossexual enrustido – e por isso violento; ou Randa, a prostituta lésbica, construída com todo o figurino e trejeitos manjados, que mais repercutem um preconceito do que o criticam; ou o retrato do travesti como meramente gay, o que não adentra a complexa e profunda discussão de gênero e da diferenciação entre as várias iniciais que formam a sigla “LGBT” – e tantas outras que nem estão compreendidas nesta palavra.
Não é que o filme, enquanto entretenimento, não seja o lugar de fazer críticas sociais, muito pelo contrário, até porque um filme é um poderoso instrumento de transmissão ideológica e de reflexão, e se bem feita a crítica, nos leva a aberturas de percepção e conscientização inefáveis. Ao querer se abordar todos os temas, não se aborda bem nenhum (esta é uma linha tênue, só bem transpassada por mestres do cinema); neste caso teria sido melhor eximir-se de pecar pelo excesso de conteúdo, optando pela simplicidade (tal qual o roteiro é simples na forma), marcando uma boa harmonia entre um ou dois temas e desenvolvendo bem as personagens e arquétipos representativos deles.
Outro pecado do filme, ainda, é forçar demais algumas situações de conflito – como o abuso do árabe machista/psicopata no começo do filme, contra Randa, que não quer se deitar com ele; ou as incursões do policial que tem uma relação conflituosa com Noha. Na mesma senda do exagero de construção da personagem, esses conflitos forçosos são desnecessários e também estão excedendo na linguagem do filme: não seria preciso construí-los, pois as personagens já foram bem apresentadas como vilanescas (abusivas, corruptas, intragáveis) e já entendemos isso em várias cenas delas; a insistência nessa construção tem o efeito inverso, justamente o de não levarmos a sério o perfil dessas personagens, pois a narrativa acaba soando mais maniqueísta do que verossímil.
No entanto, ainda assim o filme trabalha bons momentos, como a esteticamente bela cena em que as prostitutas se divertem e riem jogando-se e rolando no dinheiro dos árabes, naquilo que claramente é uma diversão frívola, enquanto rola uma música melancólica – gerando o contraste entre os sorrisos e a agonia da música. Também um bom exemplo de inserção natural na narrativa, e ainda assim poderosa de uma crítica é a cena em que o menino menor que vende balas entre as mesas da área externa num bar, é convidado para se sentar com as garotas, para levar um papo “realista”. Uma denúncia por si só da exploração infantil nesse universo (e por “gringos” europeus que vão ao país para turismo sexual).
Apesar dos problemas na construção melodramática, o filme tem seus méritos sim e pode ainda assim ser uma interessante incursão num específico universo social, retratando uma categoria duplamente marginalizada: a mulher. E se por um lado pode parecer uma crítica não muito radical para nós, de cultura ocidental e supostamente mais acostumados a lidar com tais críticas mais abertamente, perante a sociedade marroquina o filme foi um trágico choque: ‘choque’ porque foi censurado no país, por conter “sérias” ofensas a “valores morais” e à “mulher marroquina” e também por “flagrante violação da imagem do Reino” (o Marrocos é uma monarquia constitucional); e”‘trágico” porque tristemente a vida imitou a arte para a atriz principal, Loubna Abidar: se no filme a personagem Soukaina (Halima Karaouane), é quem sofre violência machista, na realidade foi Loubna quem chegou a ser fisicamente agredida por desconhecidos na rua no final de 2015, em Casablanca (a maior cidade do Marrocos e onde se passa o filme), em decorrência deste seu papel (e do preconceito e machismo exacerbados), e ao procurar a ajuda das autoridades e apoio médico ainda sofreu humilhação moral, além disso, sofreu ameaças de morte no twitter e chegou a ser processada por “profanação” (por causa de uma cena de nudez no filme).
Ao final, entendemos que acaba sendo um belo conto sobre sororidade, companheirismo, a necessidade da compaixão-apesar-de-tudo para sobreviver e alcançar ao menos alguns momentos de felicidade (ainda que afogados num poço de adversidades e infelicidades); e o seu final conciliador, embora de tom melancólico, é o retrato fiel disto. E sobre também a vida marginal num mundo onde o dinheiro é desde sinônimo de amor a resumo de relações familiares. Ao tratar em primeiro plano da condição da prostituição, trata em outros planos contíguos também do empoderamento feminino, da sociedade patriarcal e das graves incongruências econômico-sociais do capitalismo.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: Much Loved
Diretor: Nabil Ayouch
Data do lançamento no Brasil: 10 de novembro de 2016
Gui Augusto
Oie,
Não conhecia o filme, mas parece ser interessante.
bjos
Blog Vanessa Sueroz
Sorteio Um ano Inesquecível
Embora já tivesse ouvido falar deste blog, somente agora tive a oportunidade de visitá-lo. E, certamente, farei daqui ponto certo de parada… Ao observar a crítica sóbria e pontual de Gui Augusto, aumentou sobremaneira minha vontade de degustar esta obra que, a meu ver, quando de sua exibição, deveria vir acompanhada destas observações que revelam em si conhecimento e contraponto com a realidade da arte que imita a vida, que imita a arte… Parabéns!
Wyll