A telenovela errante [Resenha do Filme]

O novo filme do clássico diretor chileno, e um dos maiores latinoamericanos, Raul Ruiz (falecido em 2011), na verdade não é tão novo assim. Trazido pela ‘Perspectiva Internacional’ da 41° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, La Telenovela Errante foi rodado no final dos anos 80, e no entanto só foi finalizado agora, por sua viúva, Valeria Sarmiento, também parceira em seus roteiros e produções.
O filme traz uma trama surrealista, contada em 7 capítulos (que ele chama de dias), cuja remonta a história do Chile recente – para quem estava ali no início dos anos 90. Talvez nomear suas partes de dias seja uma referência aos 7 dias da criação bíblica, além, claro, da referência temporal ao interregno curto, uma semana, que em termos políticos pode redefinir os rumos de uma nação por décadas. 
Aqui nós temos uma espécie de nascimento de um novo Chile, nas últimas pelo menos 3 décadas anteriores à de 90, mas ele se dá nos limites do tubo das TVs antigas que entretiam o país com as famigeradas telenovelas. Com um tom ácido, o roteiro coloca personagens de diversas telenovelas fictícias que coexistem num mesmo universo para descrever em suas tramas um perfil de um Chile idílico ironizando a realidade de um Chile dilacerado pela ditadura de Pinochet. Ao longo dos 7 dias as telenovelas vão interagindo e suas personagens também.
Há um homem “de esquerda” flertando com uma mulher “casada”, provocativa e vacilante, cujo corpo delineia o próprio território chileno; há inserções da presidenta Bachelet e as incoerências de uma democracia fajuta que nunca recuperou o país das heranças nefastas do tempo de horror; assistindo a tudo isso, está uma classe média catatônica e em transe, apenas acompanhando avidamente a trama ficcional sem querer saber o fim da própria trama real, sentada num sofá e numa casa onde tudo é falso e cenográfico, inclusive estando ela mesma dentro de uma das telenovelas.
Os diálogos surreais, bem escritos por sinal, deturpam completamente um tom melodramático típico de telenovela, enquanto na tela vemos uma encenação até engraçada de tão bufonesca dos fictícios atores. A todo tempo nesses diálogos é que ocorre a construção do discurso do filme e pelos quais notamos as referências ao Chile real. O filme soa anacrônico e extemporâneo para quem não está habituado com os fatos políticos da época. 
Início dos anos 90 marcou o início da primeira década depois de muitas sob a rígida e sanguinária ditadura militar, que também endividou a nação às custas de um falso crescimento econômico, loteando o país ao capital estrangeiro, que até hoje deixa marcas lá. Saber história da América Latina e do Chile suficientemente (o que nem este que vos escreve também sabe muito além do básico) com certeza pode elevar a experiência desse filme a algo muito mais aproveitável e regozijante.
Fato é que todos esses aspectos que marcaram o Chile naqueles tempos vêm suscitados nas situações cômicas, sarcásticas e surreais que as telenovelas constroem ou encarnados nas próprias personagens, tão simbólicas quanto todo o resto da narrativa. O golpe na candidatura popular de esquerda, mulheres que ficam sozinhas porque perdem seus maridos na guerra civil ou nas câmaras de tortura, o assédio internacional desde a União Soviética aos EUA, as relações políticas espúrias, o papel da Igreja Católica (quando um personagem compara a tortura sob a ditadura à Santa Inquisição) a idiotização da classe média, entre muitas outras situações que marcaram micro ou macroscopicamente o período. 
A maior subversão é justamente construí-las através da linguagem dramatúrgica novelesca, em geral tão alienante e expositiva, aqui cheia de camadas e bizarra, instigante, curiosa; oferecendo-nos um texto sarcástico, desde os títulos de cada capítulo, às linhas de diálogo, pontuais para fazer um balanço crítico e atual, no início da redemocratização, das três últimas décadas sinistras acabadas de terminar no país, tais quais “nessa novela não se passa nada”, de quem só se resume a “ver” e “comentar as novelas alheias”; ou “a telenovela é o 4° Poder”.
A TELENOVELA ERRANTE (THE WANDERING SOAP OPERA), de Raúl Ruiz, Valeria Sarmiento (80′). CHILE. Falado em espanhol. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: Livre.
CINESESC 29/10/17 – 22:20 – Sessão: 1018 (Domingo)
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 3 30/10/17 – 22:10 – Sessão: 1114 (Segunda)
RESERVA CULTURAL – SALA 2 01/11/17 – 15:50 – Sessão: 1401 (Quarta)
Gui Augusto

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