Kóblic [Resenha do Filme]

Conferimos a Cabine de Imprensa de Kóblic. Filme estreia dia 13 de outubro de 2016.

Uma misteriosa sequência inicial abre a tela; escura, de atmosfera angustiante e ambientação de suspense – construída também pela música. Um discreto Ricardo Darín se prepara para seu trabalho. Aparentemente sua personagem é um piloto, e ele se senta na cabine de um avião, liga os aparelhos, coloca a proteção auditiva e o filme começa… Toda a atmosfera de tensão é bruscamente invertida para uma de paz total, algumas belas paisagens interioranas (com predominância de cores frias) e uma bela fotografia – presente por todo o longa – desde já anunciada. A paz é logo irrompida por uma breve discussão entre “Darín” e sua esposa. Entendemos que ele foge de algo já há algum tempo e logo se separa da mulher de forma triste, para salvá-la. São os motores propulsores da história a ser contada aqui; essa descrição foi só o início. 
Darín é Tomás Kóblic; a sequência inicial, entenderemos, é só uma parte dos vários flashbacks que atormentam o protagonista – e nos reconstituem sua vida. Kóblic foge sim, foge de si, mas não por muito tempo, e em algum momento irá encarar o próprio passado, o próprio reflexo e a corrupção e a violência de um tempo não só aferrada nas históricas figuras mais expressivas do mal, mas de certa forma, em todos os seres humanos, até os mais comuns, hodiernos, dum recatado povoado interiorano. Ele é um ex-oficial da marinha argentina, servindo durante a Ditadura Militar como piloto de um dos abjetos “voos da morte” (uma prática comum às ditaduras latinas, especialmente a chilena e a argentina), em que presos políticos eram sedados e descartados no Rio da Prata pelos aviões militares. 
É “ex” porque em dado momento, tomado por uma consciência da barbárie com a qual compactuava, caiu em si e não suportou a culpa; ousou ir de encontro à hierarquia militar. Agora, considerado um desertor, esconde-se pelo interior da Argentina, indo parar no povoado fictício de ‘Colonia Elena’, em algum lugar na Província de Buenos Aires (equivalente a “Estado” de Buenos Aires para nós). As belas paisagens filmadas são, na verdade, da cidade de San Antonio de Areco – e como já mencionei, a fotografia do filme é impecável.
Sempre se escondendo com a ajuda de amigos confiáveis, Kóblic vive e trabalha num hangar de um desses amigos, pilotando para ele o avião pulverizador nas plantações; e não deixo de destacar uma interessante cena onde é enquadrado com detalhes seu dedo pressionando o botão no sidestick da cabine de pilotagem: sabemos pelos seus flashbacks que esse era o ato responsável por abrir as portas traseiras do avião e “pulverizar” a morte pelo Rio da Prata; e agora é responsável por pulverizar agrotóxicos numa plantação (um proposital ou não paralelismo, inspirado pelo close tão específico da câmera). Outro elemento assinalável é o icônico botão de pérola (também enquadrado em detalhe), que ativa as memórias de atrocidades da ditadura em Tomás; isto pode ser ou não uma referência direta ao poético documentário O Botão de Pérola (2015), no qual o diretor chileno Patricio Guzmán utiliza o mesmo objeto para conduzir sua investigação de reconstrução cronológica deste período igualmente nefasto no Chile.
Os dias de anonimato e paz de Kóblic estarão contados quando, sem querer, o delegado do povoado, Velarde (Oscar Martínez), junta algumas peças de um quebra-cabeça, envolvendo, aliás, a forte e esperançosa Nancy (Inma Cuesta), mulher do infame dono do posto da cidade, como uma flor resistindo bela e viva plantada em solo podre. A partir daí as sortes sofrerão um revés e as coisas serão dragadas para uma espiral de violência, resultando num verdadeiro “faroeste dos pampas”. As ações desnudarão corrupção institucional, a verdadeira face do delegado e relações espúrias até com altos escalões militares. Também revelarão as chagas de violência existentes nas pessoas comuns, como o marido de Nancy e o inocente rapaz Luís, até então um garoto virgem diante da perversidade do mundo, mas será inevitavelmente atraído para tal brutalidade – inclusive, o roteiro marca bem a sua mudança psicológica, pois em dois momentos distintos ele tem uma conversa com o delegado, e da segunda vez está visivelmente mais maduro.
Confere também todo o clima de “western” ao filme a fantástica trilha sonora assinada pelo premiado compositor argentino Federico Jusid. Desde o início, logo na primeira sequência, chama a atenção pela potência e pela força de sua sonoridade –é ele o vencedor do Prêmio Goya de 2010 (o “Oscar” do Cinema espanhol) pela trilha do ótimo “Segredo De Seus Olhos”, de 2009 (também estrelando Darín) – e ao longo do filme várias incursões da trilha ajudam a contar a história, sendo ela um personagem à parte, a vagar pelos campos e bonitas paisagens, pelas quais a câmera passeia com suavidade, recriando em linhas de piano, violão e bandoneon algo remetendo a Morricone com tango.
O novato diretor Sebastián Borensztein faz mais um bom
trabalho aqui e sua química com Darín pode ser explicada pelo seu outro filme
juntos, Um Conto Chinês, de 2011 (também recomendado). Além da sumidade do
cinema argentino, Ricardo Darín (o onipresente), aqui um pouquinho mais
contido, apesar da ótima atuação, há Oscar Martínez (de Relatos Selvagens,
2014) fazendo um extraordinário trabalho, assombroso como o delegado Velarde.
Quase no final do filme, um personagem do passado aparecerá para exumar de Kóblic a própria culpa, cujo em sua jornada de fuga para ser ninguém, compreendeu que tinha uma vez mais na vida a incumbência de assumir-se Capitão Kóblic, para completar uma última missão e exorcizar todos os fantasmas da ditadura através de sangue e morte, pois essa era sua sina no mundo. Ele é nosso herói aqui, simpatizamos com o personagem, mas não podemos nos esquecer quem é: um ex-oficial da ditadura. O mocinho neste duelo de faroeste é também um bandido; não há almas só virtuosas e boas ou que se salvem (nem Nancy, nem Luís) da torrente de violência desencadeada pela própria crueldade mundana. 
Sua jornada de redenção lembra a do também desertor da Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental) e personagem principal do filme alemão A Vida dos Outros (2006), baseado em fatos reais. Ela é seu pedido de perdão por todos os absurdos que ajudou a sustentar. É seu despertar. Ao final, uma estrada aberta não dá a pista certa sobre qual é o próximo destino – apesar de ele ter um; mas sugere liberdade, liberdade, aliás, para todos os personagens: desde Kóblic, agora em trânsito no mundo, aos demais, tirados bruscamente de suas trajetórias e de suas “prisões” para serem jogados nesse mesmo destino imprevisto. Todos que foram perturbados por algum demônio mundano estão agora desimpedidos para (re)começar a sua história; alguns, livres do próprio mundo.
Como já disse o diretor, o enredo não foi real, mas foi baseado em fatos reais, quais sejam, a ditadura argentina e sua triste memória (“no es una película testimonial porque no es mi cine. Es interesante utilizar algo histórico como contexto, por eso Kóblic es un personaje inventado en un contexto real”). A coprodução entre Espanha e Argentina, vencedora de duas Biznagas de Plata (de melhor fotografia e de melhor ator coadjuvante, para Oscar Martínez) no Festival de Cinema de Málaga (um dos mais importantes da Espanha), é um competente thriller dramático de beleza estética (e é notável como as produções argentinas, têm “cara de cinema”, de coisa grande, não deixando nada a dever a grandes produções europeias), fortes atuações, narrativa inteligente, uma trilha sonora original incrível e um enredo, apesar de simples e até clichê, bastante funcional e bem enlaçado.
Trailer:


FICHA TÉCNICA

Título: Kóblic
Ano: 2016
Diretor: Sebastián Borensztein
Dada do Lançamento: 13/10/2016

Gui Augusto

17 thoughts on “Kóblic [Resenha do Filme]

  • 14 de outubro de 2016 em 00:01
    Permalink

    Olá, Gui.
    Esse filme não estava nos meus planos, mas depois dessa sua resenha ficou difícil. A premissa é muito boa e quero conferir também o trabalho com a fotografia.
    Sem falar que gosto do trabalho do ator.
    Ótima dica.

    Desbravador de Mundos – Participe do top comentarista de outubro. Serão dois vencedores, dividindo 5 livros.

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 00:10
    Permalink

    Oi!
    Nunca ouvi falar desse filme. Mas a história é bem interessante. Parabéns pela Resenha!

    Guilherme Nascimento | No Planeta dos Livros

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 03:38
    Permalink

    Gostei da dica Gui. O filme não faz muito o meu estilo, mas o achei interessante, principalmente por abordar a ditadura na Argentina e no Chile. Abraço!

    http://www.newsnessa.com

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 10:42
    Permalink

    Resenha maravilhosa e muito completa, parabéns!
    Eu adorei saber, principalmente por abordar a ditadura militar, amo ver filmes assim e saber mais ou menos o que aconteceu naquela época.
    Agora nesse final de semana, vou chamar minha mamãe para ver esse filme comigo, ela adora! haha
    Beijos. ♥

    Diário da Lady

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 14:46
    Permalink

    Taí um filme que, sem dúvida, se eu visse passando, eu não assistiria. Sério.
    E tudo por pura ignorância, por não saber do que se trata e não ter paciência de esperar pra ver, rs. Mas a sua resenha me deixou doida pra assistir. Tipo doida mesmooooo!
    Adorei, Mi!
    Agregou algo lindo à minha lista de filmes que preciso assistir pra ontem! Rs

    Beijos!
    Fabi Carvalhais
    Pausa Para Pitacos | Participe do TOP COMENTARISTA

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 15:27
    Permalink

    Que lega, eu gosto de filme desse gênero de vez em quando (não é sempre, tenho preferencia), ainda não assisti mas espero poder em breve. Final de semana vem ai haha!

    http://www.leitorasvorazes.com.br

    Resposta
  • 14 de outubro de 2016 em 15:28
    Permalink

    Oi Gui, tudo bem?
    Nossa, sua crítica ao filme ficou perfeita!!! Estou babando com a ideia do botão, quem escreveu o roteiro teve uma percepção genial. Esse simples ato no passado condenou sua alma, e é como se hoje, no presente, o mesmo simples ato, o estivesse redimindo. O que nos leva a pensar, sempre, em qualquer situação, podermos escolher fazer o bem, ou o mal. E concordo com você, não podemos esquecer que ele foi um dos vilões, mesmo que tenha se arrependido depois. Que história!!! Não conhecia o filme, mas impossível não correr para ver depois do seu texto.
    beijinhos.
    cila.
    http://cantinhoparaleitura.blogspot.com.br/

    Resposta
  • 15 de outubro de 2016 em 04:44
    Permalink

    oi tudo bem?

    nunca assisti esse filme, mas achei sua resenha interessante
    vou marcar pra mim assistir mas tarde beijos

    Taynara MEllo | indicar Livros
    http://www.indicarlivros.com/

    Resposta

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