Êxodo: Deuses e Reis [Resenha do Filme]

Título Original: Exudus: Gods and Kings
Diretor: Ridley
Scott
Ano de produção:
2014
Produção: Estados
Unidos/Reino Unido/Espanha
Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley
   
Estava ansiosa em ver a última produção de Ridley Scott, uma produção que custou U$ 140 milhões – o projeto inicial era de U$ 200 milhões – e no primeiro final de semana rendeu U$ 24 milhões em bilheterias (um valor inferior quando comparado a “Noé Darren Aronofsky” ou “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson). Desde que foi anunciada, vinha dando o que falar e pós-lançamento rendeu muito mais debates e reações contrárias à produção. Isso porque o filme estaria “subvertendo a lógica bíblica e histórica”, como julgaram autoridades egípcias que proibiram a exibição do filme em seu país (o mesmo ocorreu com o filme “Noé de Darren Aronofsky”). A argumentação histórica passa pelo fato de colocar hebreus como escravos construtores de pirâmides em Píton. Outra crítica no campo da história tem passado pelo fato de que no tempo de Ramsés não se construía mais pirâmides e o processo de mumificação não era feito da forma como é apresentado no filme. 
Casamento de Moisés e Zípora. 
E por fim e talvez o que foi considerado o aspecto mais grave entre críticos sobre incoerências históricas, foi à utilização de personagens brancos. Havendo inclusive uma iniciativa de boicote a produção. [1] Scott fez algumas declarações afirmando que sua opção em utilizar atores brancos em seu filme não perpassou no âmbito do preconceito, mas por questões orçamentárias. Segundo o mesmo, se ele optasse por usar atores negros a produção encareceria muito e não obteria o financiamento. Christian Bale, advogou em defesa do diretor e disse que não via problemas em um filme que se passasse no Egito Antigo, mas que contasse com um elenco branco quase que em sua totalidade já que se trata de uma criação.
Eu veria a questão sob outra perspectiva. Devemos considerar a fala de Scott como um indicativo do processo de branqueamento que o Egito passou ao longo da história do mundo ocidental. Infelizmente, no imaginário ocidental o Egito foi desvinculado do continente africano. Pensar em Egito é pensar em um mundo exótico com uma rainha branca (Cleópatra eternizada nos cinemas em Elizabeth Taylor) que seduziu Julio César.
Lembro-me de certa vez ler trabalho de uma professora de história que resolveu entrevistar seus alunos do ensino fundamental II para saber o eles sabiam sobre o Egito e o resultado foi: múmias, escaravelhos, pirâmides e Cleópatra. Quando questionados sobre a localização geográfica do Egito a grande maioria não soube responder, alguns sugerindo apenas ser algum lugar na Europa ou próximo a Europa, mas jamais a África. Pelo contrário, a professora relatou que os alunos ficaram surpresos ao descobrirem que o Egito ficava na África. Eu mesma tive a oportunidade de verificar isso quando também lecionei para turmas do ensino fundamental II. Meus alunos estranharam ao descobrir que o Egito que eles conheciam em games e filmes, está na ‘África pobre’ (estou usando a expressão que ouvi na época). 
No que tange aos aspectos bíblicos a narrativa chocou também por contradizer alguns fatos da narrativa do livro de “Êxodo”, no que diz respeito à personagem Moisés, as dez pragas sob o Egito e em especial a tornar Deus um personagem. Antes de qualquer coisa, eu gostaria de chamar atenção a alguns aspectos sobre o diretor e sobre cinema. O que talvez contribua para uma melhor compreensão do filme.

Em primeiro lugar, devemos entender “Êxodo” não como uma obra independente, mas dentro do contexto de produção e do histórico de produções do diretor. O que vemos nas telas de cinema, ou em nossas casas, é o olhar do diretor sobre um determinado evento ou fato. Por isso minha preocupação em chamar atenção ao diretor. E em segundo lugar, lembrar que a sétima arte é apenas mais uma forma para nos reportar a um evento, o que não significa dizer que falar de ou sobre algo implique necessariamente em reconstituir a verdade. E se afirmar-se em reconstituir a verdade, deve-se questionar também o significado da verdade. 

Ramsés e sua mamãe má. 
Em outras palavras, no caso em específico “Êxodo” baseia-se em um texto homólogo para falar sobre um dos personagens mais famosos do chamado Antigo Testamento. Mas será que os fatos expressos no texto são verídicos? Ou é apenas uma narrativa mítica? E ainda, o que impede ou não autoriza que alguém produza um material novo a partir de uma obra literária. As questões para as perguntas acima estão diretamente na origem da história do cinema e na dificuldade de algumas pessoas em entenderem os textos bíblicos como produções literárias.
O cinema surgiu em finais do século XIX e foi nesse mesmo período em que se começou a produzir os primeiros filmes sobre Jesus. O fato de diretores não ligados a instituições religiosas produzirem materiais sobre personagens bíblicos (em primeiro lugar Jesus) incomodou absurdamente lideranças religiosas que perceberam que estavam perdendo o monopólio do falar sobre Jesus, o que levou a políticas de regulamentação sobre a forma de filmar Jesus, ou seja, políticas de censura (nos Estados Unidos houve a criação de um conselho fiscalizador [2]). Essas políticas ainda hoje de forma mais silenciosas continuam ocorrendo. Um bom exemplo disso foi à proibição da exibição do filme no Egito ou mesmo as reações de lideranças religiosas que condenam as produções como profanadoras ou blasfêmias.
Essas acusações por parte de algumas lideranças religiosas derivam muitas vezes da compreensão que os textos bíblicos ou canônicos são sagrados e que relatam a verdade tal como está escrito. Ao invés de compreenderem como produções literárias escritas em um contexto político-social, econômico e religioso e que passaram por uma seleção para se tornarem sagrados (os textos do Antigo Testamento só são fechados e/ou selecionados no século III da era comum! [3]). Além disso, ao compreendê-las como produções literárias nos permite problematizar as experiências religiosas, observar como personagens e eventos vão sendo lidos e relidos ao longo da história. Sem que isso signifique retirar o encantamento ou o direito do indivíduo maravilhar-se com o que lê e/ou interpreta. Evitando assim, discursos fundamentalistas e intolerantes. Um olhar que entende que todo texto (seja ela escrito ou imagético) é uma produção fruto de um tempo, de um espaço que permite respeitar toda e qualquer experiência religiosa. 

Feitas essas considerações, eu diria que “Êxodo” não é um filme confessional, mas um épico que tem como personagem central Moisés, que se torna no olhar de Ridley Scott mais um de seus heróis que é forte, corajoso, justo e com princípios morais que busca salvar uma população em perigo; assim como foi “Gladiador” (2000) e “Cruzada” (2005).

O Moisés de Ridley Scott pouco tem, ou nada tem, do Moisés que está no livro de “Êxodo”.

O Moisés de Ridley Scott é mais um personagem dentro da história de produções do diretor e, dialogando com a lógica do mundo ocidental, entende a salvação dos oprimidos como algo a ser feita por intermédio de um indivíduo com determinados tributos para ser categorizado como o escolhido. E por isso mesmo, Moisés é um comandante valente e justo, respeitado por todos. É aquele reconhecido em presságios e profecias como um grande homem destinado a uma grande missão.

O diferencial desta obra talvez seja o fato de haver uma tensão estabelecida entre o divino e o homem honrado. A tensão inicialmente se dá, pois temos um Moisés descrente da religião e que entende os discursos religiosos como algo a abrir margem para o fanatismo e o fundamentalismo. Sendo assim, um Moisés que está longe do mundo antigo, este é um Moisés do século XXI. E que mesmo após o seu encontro com Deus, continua racionalizando a sua fé. Fazendo críticas a um Deus que por vezes se apresenta como cruel e capaz de qualquer coisa para obter seus desejos. O segundo momento da tensão, é quando Deus percebe que Moisés não era um comandante tão bom assim, resolvendo ele mesmo agir em prol do seu objetivo. 
Essas questões nos levam diretamente a outro personagem que tem chamado atenção dos críticos e público em geral: Deus.

Diferentemente do filme “Os Dez Mandamentos” de Cecil De Mille que é representado por um arbusto em chamas [4], o Deus de Scott se torna uma criança representa por um menino (Isaac Andrews) [5] que se apresenta com um ar angelical, mas acaba se revelando cruel, violento e capaz de qualquer coisa para conseguir o que quer. Sua postura acaba sendo questionada por Moisés, por não aceitar toda aquela violência. E o “menino Deus” responde que isso não era uma preocupação sua, que o que ele queria era ver os egípcios, que se achavam deuses, ajoelhados. Essa fala do” menino Deus” é curiosa, pois além de remeter ao título do filme, mostra outro cenário: a batalha no final das contas é para saber qual deus será anulado. O que talvez explique o fato de apenas Ramsés sobreviver na passagem da travessia do mar, os 4 mil homens que estavam com ele foram todos mortos.


A travessia no mar encera a tensão entre deuses e abre espaço para outro momento do filme: período de condução os libertos a Canaã e a composição das tábuas da lei (os dez mandamentos). Digo que é uma nova fase, por conta de dois indícios. O primeiro é a conversa de Moisés com seu irmão Araão, onde Moisés afirma que a união havia chegado ao fim que dali pra frente haveria tensões e disputas entre o grupo. O segundo momento é outro diálogo: agora entre Deus e Moisés, em que Deus diz a Moisés que leis são necessárias para quando os homens falham.

Essas duas falas parecem, em primeiro lugar, indicar um processo de institucionalização da religião e, em segundo, a necessidade de um texto sagrado para que a ordem seja mantida e que se cultue apenas a um deus e o poder esteja sobre um grupo político-religioso. O que pode ser aqui visto aqui como uma percepção do mundo contemporâneo ocidental, em que por vezes grupos religiosos ao assumirem o poder acabam por tentarem impor suas visões de mundo como as verdadeiras, ignorando a diversidade religiosa, étnica, cultural e sexual. 

“Êxodo: Deuses e Reis” é a leitura de um diretor brilhante, capaz de executar cenas belíssimas e muito bem trabalhadas em riquezas de efeitos e detalhes, sobre um conto mítico que vem sendo visto e relido ao longo da história. A produção de Ridley Scott é um magnífico exemplo de como usamos e abusamos do passado (ainda que seja um passado inventado) para tratamos de nossas impressões sobre o tempo presente.

_______________

[1] Usuários do Twitter fizeram a campanha “#BoycottExodusMovie” (“Boicote o filme ‘Êxodo'”). Leia mais: http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/ridley-scott-diz-que-nao-conseguiria-filmar-exodo-com-elenco-desconhecido-14686258#ixzz3NtJjBQzU
[2] CHEVITARESE, André. Jesus no Cinema (Volume 1). Rio de Janeiro: Kline, 2013.
Juliana Cavalcanti

4 thoughts on “Êxodo: Deuses e Reis [Resenha do Filme]

  • 14 de janeiro de 2015 em 17:29
    Permalink

    Uau!!! Ju você puxou uma discussão e tanto a partir do filme, dava até para você expandir alguns tópicos e transformar em um artigo acadêmico.

    Não cheguei a ver o filme no cinema, e apesar de entender que fora do ponto de vista religioso a Bíblia é um clássico que pode ser interpretado e ressignificado como a criatividade desejar eu confesso: sinto certa agonia vejo um Deus ou Moises diferente daquele retratado na Bíblia, ou que eu aprendi a ver nos textos sagrados, as vezes parece que os roteiristas e diretores querem apenas apelar para a polemica e assim atrair público as suas produções.

    Mas, o que para mim não tem perdão ou justificativa e me faria fazer boicote ao filme é a questão dos egípcios brancos. Acho isso tão escroto, tão vulgar, tão inconveniente e impossível de justificar. A narrativa mitológica é até passível de múltiplas interpretações, mas essa questão da cor e da etnia não. Acho inaceitável e foi o que me afastou de ver a produção no cinema. TALVEZ, eu veja em outra mídia, ainda não cheguei a um consenso interno.

    Cheros, Jaci.

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  • 15 de janeiro de 2015 em 01:13
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    Estou querendo muito assistir esse filme no cinema,mas como estou sem tempo ainda não tive oportunidade de assistir.
    Sua resenha ficou incrível e fiquei com muito mais vontade de ir assistir agora.
    Beijos
    http://nadadecontodefadas.blogspot.com.br/

    Resposta
  • 18 de janeiro de 2015 em 18:50
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    Estou curiosa com esse filme exatamente por causa dos pontos que você levantou. Sou evangélica e já ouvi muitos comentários negativos de pessoas que assistiram. Quando vou assistir algum filme baseado na bíblia, sempre separo o filme do que está escrito. Aconteceu isso com Noé. Foi bem diferente da história bíblica, mas se olhar sob outro prisma que não seja a bíblica, o filme foi muito bom.

    Blog Prefácio

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