Félicité [Resenha do Filme]

O diretor e corroteirista Alain Gomis nos dá esta coprodução entre França, Senegal, Líbano, Bélgica e Alemanha, figurando na competição “Perspectiva Internacional” da 41ª Mostra, após já ter faturado um urso de prata de Prêmio do Júri no Festival de Berlim desse ano. O filme, de 2017, conta a história da própria personagem que dá o seu título: Félicité (Véro Tshanda Beya Mputu).
Vivendo na cidade de Kinshasa, Congo, a mãe solteira trabalha como cantora num bar local, e sobrevive no limite financeiro entre criar seu filho de 14 anos e se sustentar, num ambiente hostil e árido, em que outras mulheres como ela obrigatoriamente acabam optando por alternativas mais tristes (impostas por um capitalismo injusto e corrupto). Quando seu filho sofre um acidente de moto (com a moto dela), sua vida fica movimentada e o drama de sua jornada começa, tendo que revisitar chagas do passado, como o ex-marido abusivo e orgulhoso, ou tendo que seguir adiante e formular um futuro que nunca planejou, mas que sem querer bate à sua porta – personificado na figura bonachona do matuto e simpático Tabu (Papi Mpaka).
A jovem e forte mãe solteira (seria digno de se lembrar da icônica “Mama Africa” descrita na canção de Chico Cesar), com seus momentos de silêncio e olhares lacrimejantes, perdida entre a realidade dura e um sonho poético, confere outro significado à palavra “Felicidade”. Os únicos momentos em que ela pode fruir desse conceito idealista são os poucos refugos do catártico bar onde canta, quando ela é registrada pela câmera e pela fotografia com efeitos oníricos, como se estivesse envolvida numa espécie de transe. 
O bar, uma espécie de boteco local, é representativo, aliás, do próprio refúgio (e único) que todos os habitantes desse microcosmo possuem. Tabu, inocente feito um garoto, se sente homem enchendo a cara e dando em cima de todas as mulheres dali (e fracassando na maioria das vezes), seus dias passam enquanto ele é mero coadjuvante na própria vida; ele apenas existe, entre dias trabalhados, como eletricista (e faz-tudo) autônomo, e noites embriagado.
Esse bar é um furo idílico na concretude dos dias. Não só Félicité entra em seu transe, ou Tabu em seu torpor; todos que ali estão, vão para compartilhar um momento, desfrutar principalmente da música e do prazer do encontro, da vida em comunidade, ou até desafogar uma violência contida. Mais que isso: para vivenciar a experiência das próprias tradições e folclore, talvez reconectar-se com o passado, num universo feio e deformado de um país que existe na periferia do capitalismo, sistema cujo a todo tempo, desde que se impôs ali pelo colonialismo, tentou e tenta apagar as particularidades de um povo ou sua essência cultural, para torná-lo perfeito ‘exército de reserva’, mão-de-obra funcional e à disposição do mercado globalizado, sem identidade ou história.
Além de um elenco extraordinário, temos um roteiro e um trabalho de imagem muito competentes. Basicamente todos os atores emprestam potência e intensidade aos papéis; imprimem força e verossimilhança à atuação, bem como têm o controle ao transitar entre os momentos mais sutis e emocionais com naturalidade. O que chega a ser positivamente surpreendente, pois a produção vem de um país cujo tão pouco sabemos do teatro ou do cinema.
Dentre ótimos fotografia e posicionamento de câmera é notável o domínio no uso da luz também. Tudo tem o seu lugar, encaixado de forma inteligente pelo desenvolvimento visual da narrativa. Planos enxertados com precisão cirúrgica conduzem a passagem ao delírio e ao sonho com a mesma organicidade que apresenta a realidade. Há closes que se detém em olhares tristes, sofridos, meio lacrimejantes, e nos contam por meio da tela e do silêncio quem são aquelas pessoas; através das expressões faciais, algumas personagens conseguem nos passar um relance da sua alma e fazermo-nos compreender os seus desejos e motivações na trama (somando à boa atuação).
Todo esse equilíbrio, porém, funciona mais na primeira hora de filme. Durante sua segunda hora, por um problema de montagem, o filme se perde e a narrativa torna-se prolixa e repetitiva (insistente em ideias que já foram captadas pelo público, muito reafirmadas e reapresentadas).
O roteiro, apesar de bom, parece um pouco descompassado. As situações não estão distribuídas de maneira equânime e dinâmica ao longo do enredo, de modo que na primeira hora o filme resolve o principal conflito que vinha sendo preparado e construído (cuidar do filho), enquanto na segunda hora até seu fim ele perde vigor e brilho, e desenvolve um conflito menor como se fosse principal, que acaba ficando mais desinteressante por lhe faltar o mesmo acompanhamento e suspense dantes já construídos para o principal. Apesar disso, queremos saber seu desfecho (e a curiosidade é o maior ponto nodal de interesse que nos mantém conectados à história nessa segunda parte).
Por seu trabalho de ambientação, competente durante o filme todo, e por sua música, o ritmo do filme não fica cansativo (apesar dessa confusão na sua segunda metade). Especialmente a ambientação sonora, lírica e sutil, e o belo trabalho de cores, conduzindo as transições entre realidade e fantasia. Somos, ainda, colocados nas ruas e becos reais de Kinshasa, e isso cria uma forte identificação, convidados a vivenciar o dia-a-dia dessas personagens, e a ver de perto seus costumes e os relatos de uma vida comunitária que resiste ao individualismo contemporâneo (como as decisões em rodas de debates ou o hábito de se referir uns aos outros como “papa” ou “mama”, evidenciando um sentido familiar ainda remanescente naquela sociedade).
Apesar de parecer concentrar dois conflitos principais dentro do mesmo filme, desenvolvendo-os de forma pouco fluida ou não simultânea, um a cada hora, a construção narrativa ainda assim funciona. Inclusive, as motivações em cada conflito também não se perdem. Daí conseguirmos nos manter empáticos com a história. Após, então, resolver a questão com o filho, Félicité se vê obrigada a resolver a questão consigo mesma, é a hora que uma história de amor floresce na tela, mas é mais uma história de aprendizagem e ensinamento sobre o amor num mundo que parece árido e sem esperanças, e no qual os poucos refluxos de encantamento se dão através da música e das noites no bar.
Quando Félicité compreende e retoma sua vida, decide sair do transe e do sonho da floresta (que ela vem a descobrir ser compartilhado; como tantos dos nossos sonhos, que vivem no mesmo universo platônico sem saber) até sua relação com o bar e a profissão de cantora mudam, ela muda, visual e espiritualmente, sorrisos nunca dantes vistos por vezes explodem em seu rosto. Juntamente com ela, Tabu aprende a amadurecer de verdade e parar de esconder o Homem atrás de autoafirmações vazias, para ceder à honestidade de seus próprios desejos de forma menos pueril. Até o filho de Félicité, nesse meio caminho, encontra também um pouco mais de respiro e, talvez, de “felicidade”. Este não é um filme de esperança e nem um melodrama com um discurso moralista de fundo, mas nos provoca por certo a refletir sobre a possibilidade dela até na mais cruel das realidades.
Sessões:
FÉLICITÉ (FÉLICITÉ), de Alain Gomis (123′). FRANÇA, SENEGAL, LÍBANO, BÉLGICA, ALEMANHA. Falado em lingala. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: Livre.
CINESESC 20/10/17 – 16:40 – Sessão: 115 (Sexta)
PLAYARTE MARABÁ – SALA 1 21/10/17 – 16:30 – Sessão: 261 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 25/10/17 – 15:30 – Sessão: 591 (Quarta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 29/10/17 – 14:00 – Sessão: 1048 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 3 30/10/17 – 19:15 – Sessão: 1160 (Segunda)
Mais informações: http://41.mostra.org/br/home/

Gui Augusto

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