A Morte de Luís XIV [Resenha do Filme]

Com uma exibição de pré-estreia tendo já visitado terras paulistanas em 14 de setembro de 2016, na abertura do Indie Festival 2016, estreia nesta quinta-feira, 26, esta belíssima e monótona pintura animada (ainda que se movimente lentamente), A Morte de Luís XIV. O filme mais recente do jovem cineasta catalão independente, Albert Serra, traz novamente a lume seus já típicos e tradicionais elementos, as marcas deste cineasta, mas parecem aqui manuseadas com tal habilidade que revelam um claro crescendo na produção do diretor.
Se não fosse a idade do cineasta e a possibilidade de muita vida e muitas produções ainda pela frente, seria possível dizer que este filme alcançou o status de obra-prima na filmografia de Serra. Chamo-o de “pintura animada” porque desde a estética, a sonoplastia, o figurino, à fotografia, à ambientação, ao ritmo e ao enredo dele (cujo, inclusive, remete-nos a uma época onde a pintura e as artes plásticas eram a primordial expressão artística visual), sua intenção é nos colocar dentro de um quadro e vivenciar um momento que de tão tênue e breve, poderia ter sido pintado. E o “lentamente” é para ressaltar uma marca do diretor.
Albert Serra é um diretor explorando as parcialidades, os detalhes, as coisas que não chamam a atenção (ou não chamariam, caso ele não as transformasse em filmes). São filmes indigestos para o público de cinema acostumado com ritmo frenético, excessos de efeitos especiais, roteiros palatáveis cheios de repetições de padrões – e veja, não cito esses aspectos em tom pejorativo, são apenas formadores de um outro estilo de cinema. O cinema de Serra favorece o tempo, a paciência, a apreensão, a imersão, a vivência de um momento juntamente com os personagens. São aspectos somente possíveis num filme de ritmo lento, arrastado, mas muito rico para quem prestar a atenção e se deixar levar pela imaginação e a reflexão que o enredo provoca.

Em Honra de Cavalaria, o diretor quer retratar um simples vislumbre da jornada de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, caso eles fossem dois homens que existiram de verdade, viajando solitários, perdidos por paisagens a fio, abandonados numa longa caminhada. Em O Canto dos Pássaros, Serra volta seu olhar minimalista para o que teria sido a longa jornada dos três reis magos até a manjedoura onde nasceu Cristo, através de planícies hostis, numa época em que o trajeto feito a pé por três idosos seria especialmente penoso. 
Estes são apenas dois exemplos da filmografia com 14 títulos de Albert Serra, e mostram bem do que se trata seu cinema: apresentar ao espectador reimaginações de personagens e épocas da maneira mais visceral. Tentar retratar figuras da fantasia ou figuras históricas o mais próximo de uma realidade possível. E isto é feito com maestria ímpar em A Morte de Luís XIV, onde todos esses elementos do peculiar cinema deste diretor progridem a um nível de cuidado, detalhe e sutileza que só comprovam clara evolução na sua produção. Aqui, mais do que nunca em sua filmografia, a riqueza das pequenas coisas está em evidência.
A câmera de Serra é o olhar histórico do espectador reposicionado ao longo do tempo e da história. É como se ele nos permitisse viajar no tempo e presenciar um momento, com toda a crueza e a total falta de glamour da realidade. É o cinema dos devires minoritários, sempre à sombra das grandes histórias e dos grandes personagens. Se em Honra de Cavalaria ele preferiu mirar na caminhada de dois esfarrapados Quixote e Sancho por pastagens desoladas da Espanha do século XVII, ao invés de nos entregar uma aventura alucinante com arroubos de fantasia e ação, recheada de efeitos especiais e um roteiro heroico (tudo o que uma grande produção prospectaria da história original de Cervantes); e em O Canto dos Pássaros ele preferiu imaginar o que teria sido o martírio de uma jornada para visitar o menino Jesus há dois milênios, ao invés de ser mais um a recontar no cinema uma história bíblica de roupagem épica e de grandes proporções; em A Morte de Luís XIV, Albert Serra abre mão de abordar das maneiras mais extravagantes (e todas seriam possíveis) a vida de um dos mais importantes governantes da História, para preferir mostrar na tela um melancólico velório.

O que mais chama a atenção na coragem e na obstinação do cinema independente de Serra é que ao abordar uma figura histórica tão famosa, controversa e rica em histórias, seria tão mais fácil acompanhar as tendências atuais do mercado e retratá-la numa longa série da Netflix ou numa superprodução histórica de mais de 3 horas (e trilogia de filmes), delineando toda a ascensão e queda do poderoso Luís XIV (o rei que se autoproclamou o Estado e se tornou o símbolo do absolutismo não só francês, mas europeu), um dos mais importantes governantes da História; mas, não, nas mãos de Albert Serra todo esse potencial de entretenimento foi descartado em favor da delicadeza de retratar poeticamente um momento de fragilidade de um grande homem, captando um memento mori protagonizado por uma figura icônica. De um só golpe, uma afronta aos imperativos mercadológicos e uma afronta à iconografia consagrada de Luís XIV.

O olhar de Serra é sempre desviado para o lugar periférico, a trama que ninguém quer saber, e dali retira uma grande história. Ritmo arrastado, bem pouco movimentada, mas profundamente rica em reflexão e sonho (tudo o que faz do cinema uma arte). Numa simples caminhada matinal, o Rei Luís XIV sente dores nas pernas. Dias depois ele está acamado e com problemas alimentares e febre. Nas quase duas horas de filme acompanhamos exatamente os últimos dias de brilho do afamado Rei Sol, desbancado pela gangrena e por Albert Serra de toda a sua imagem e poder, desnudado como um mero mortal por uma impiedosa e seca câmera que rompe a memória sagrada e a intimidade do monarca colocando-nos sem licença, sem permissão e sem escrúpulo ao redor da cama onde, moribundo, ele definha, mas tudo isso feito com um cuidado estético e uma poesia sublimes.
A altiva figura de um Rei, especialmente o Rei que é o Estado e é o Sol, o centro de todas as atenções de um século, parece aqui menor, pequena, sufocada entre as cobertas pelo peso de seu próprio poder. Está constantemente rodeado de sua corte, um batalhão de empregados, asseclas e puxa-sacos; a câmera, também histórica, passeia pelos dias finais do Rei exibindo um registro de época: as roupas, os trejeitos, a ciência (os médicos e as descobertas do tempo), a filosofia, a situação política (a preocupação com o futuro do reino e a ausência de herdeiros de sangue), tudo passa por aquele quarto, e ainda assim, parece que nada está acontecendo, e estamos todos só esperando a morte. A pompa, a reverência, a carência, a solidão e os mimos de um nobre da mais alta estirpe, são todos mostrados com um olhar quase compassivo. Somos forçados a ter pena de Luís XIV e velá-lo também.

Tudo só é favorecido com a estupenda atuação do veterano ator francês, Jean-Pierre Léaud. O mito de 72 anos de idade nos entrega uma personagem plena, numa atuação contida e densa, com profundidade, com a possibilidade de sentirmos todas as suas camadas, provando que não era grande só nos anos 60 e 70, quando brilhou no cinema francês sob as batutas de François Truffaut e Jean-Luc Godard, mas que continua grande. É o nosso Rei Sol da atuação aqui.
Um filme sutil, que busca a beleza onde nunca imaginamos encontrar e que nos intriga pela história insólita e diferente que decide nos contar. A Morte de Luís XIV é uma boa experiência cinematográfica para quem ainda não se aventurou pelo lado obscuro da sétima arte – aquele cinema fora dos padrões. É uma boa pedida dentre as estreias da semana – de preferência se você estiver paciente e atento (leia-se, sem sono), e disposto a uma viagem onírica e realista ao mesmo tempo.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: A Morte de Luís XIV
Título Original: Last Days of Louis XIV
Direção: : Albert Serra
Data do Lançamento no Brasil: 26 de janeiro de 2017.
Gui Augusto

5 thoughts on “A Morte de Luís XIV [Resenha do Filme]

  • 25 de janeiro de 2017 em 23:15
    Permalink

    Oláá! tudo bem?
    Nossa, estou impressionada com a sua resenha! tão rica de informação!! eu realmente não entendo muito bem de cinema e já não me recordo muito de história… por isso, esse talvez fosse um filme que passaria despercebido por mim. mas lendo a sua resenha eu me interessei muito!
    beeijo

    http://lecaferouge.blogspot.com.br/

    Resposta
  • 25 de janeiro de 2017 em 23:20
    Permalink

    vou querer ver. beijos, pedrita

    Resposta
  • 26 de janeiro de 2017 em 01:44
    Permalink

    Gostei da dica Gui. Aprecio filmes que tratem de temas históricos e imagino que este a respeito da morte de Luis XIV seja realmente incrível. Abraço!

    http://www.newsnessa.com

    Resposta
  • 26 de janeiro de 2017 em 02:14
    Permalink

    Oi Gui, tudo bem?
    Não conhecia o diretor e gostei muito de aprender mais sobre ele. Bom saber que ainda podemos contar com diretores que saibam fazer a diferença em uma arte já tão explorada.
    Abraço.
    Lia Christo
    http://www.docesletras.com.br

    Resposta

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