Três anúncios para um crime [Resenha do Filme]

A comédia que mistura drama e policial do diretor e roteirista Martin McDonagh (de outros filmes do gênero, como Na Mira do Chefe, de 2008, ou Sete Psicopatas e um Shih Tzu, de 2012) levanta uma série de questões urgentes e atuais dos EUA; que são questões, infelizmente, universais. “Infelizmente” porque não são aspectos positivos para se definir uma sociedade, e sim denotam todo o regresso em que estamos metidos…
O ódio e o preconceito do povo mais conservador daquele país, especialmente de cidades pequenas do Sul, são a todo tempo provocados e exorcizados pelas piadas e personagens bufônicas do filme. Temas como descaso e violência institucional, cinismo social, psicopatia, agressividade contida, ganância, constroem um retrato desse tipo de povo. Na mira da crítica tragicômica está aquele que poderíamos entender como o típico “cidadão de bem”, ou a famigerada “gente de bem”; aquela parcela da classe média que se considera pura e angelical, um ser humano perfeito, do lado “bom” do espectro maniqueísta que criou no seu imaginário para entender a sociedade. Esse mesmo tipo de gente, que procura respostas fáceis para problemas sociais complexos; e talvez, a mais fácil das respostas seja a violência.
Trazendo numa escalação de elenco espetacular atores da estirpe de Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell, Caleb Landry Jones, Sandy Martin, e até Peter Dinklage (nosso eterno Tyrion – que, porém, antes de ser Tyrion já tinha ótimos trabalhos no currículo, em Na Ponta dos Pés, 2003, ou em Morte no Funeral, 2007), o longa conta a história de uma mãe, Mildred Hayes (Frances), que luta por justiça e visibilidade a um crime sem resolução na pequena cidade de Ebbing, no Missouri, sul dos Estados Unidos. Há ainda a presença de excelentes atores da atual geração, como Lucas Hedges (Robbie Hayes, filho de Mildred) e John Hawkes (Charlie, ex-marido de Mildred).
O crime? O bárbaro estupro seguido de incêndio do cadáver, que vitimou sua filha, Angela Hayes (Kathryn Newton); o culpado? Ninguém sabe. Baseada num desejo de vingança, num dilacerante sentimento de culpa e numa teoria jurídica distorcida (presente na jurisprudência e utilizada no passado para prender um chefe de máfia sem provas), Mildred decide apontar o nome do chefe de polícia local, Bill Willoughby (Harrelson), como responsável objetivo pelo fato. Ocorre é que a maneira como ela faz isso, nada jurídica ou formal, cria um rebuliço e provoca uma reação em cadeia de proporções tragicômicas. Mais caótica ainda fica a trama quando eventos que se sucedem com Bill movimentam todas as personagens rumo a uma espiral de violência e desencontros.
Soma sucesso ao gênero que os atores elencados quase todos tenham perfeito timing para humor e experiência nesse tipo de comédia, como Frances (tão boa quanto não se via desde Fargo, dos Coen) e Woody, revelando ainda surpreendentes destaques como Sam Rockwell e Caleb Landry Jones (do excelente Antiviral, de 2012), atores menos experimentados em comédia. A ‘mama Dixon’ de Sandy Martin, como a displicente e cínica mãe racista do policial mimado e cheio de ódio, Jason Dixon (Rockwell), dá um show à parte.
Na sua epopeia desesperada e mista de emoções complexas e contraditórias Mildred, ao expor a polícia de Ebbing, acaba expondo, de modo caótico, as chagas daquela pequena comunidade; e da própria sociedade norte-americana. Sua personagem detém o arquétipo do trickster, desafiando figuras de poder e autoridades, figuras morais e religiosas, para desnudar toda a hipocrisia que as transpassa.

Mildred Hayes e Jason Dixon são duas faces da mesma moeda (o que fica evidente na conclusão dos arcos narrativos das duas personagens); dois exemplos distintos de um mesmo estereótipo médio de cidadão, encontram na violência o único desafogo possível. Uma direciona a raiva de mãe injustiçada contra o sistema, uma violência iconoclasta, aderindo à desobediência civil; o outro, desova suas frustrações de um macho fragilizado, com ego inflado e uma vida tão miserável quanto a de Mildred, na violência social, no ódio contra o diferente. A própria construção dessa personagem é provocadora: um policial famoso por “torturar negros” (uma crítica direta a um modelo institucional de segurança pública baseado na rotulação social e no ‘direito penal do inimigo’, que naturalizou a barbárie contra a população pobre, periférica e negra).

Ao mesmo tempo, outras personagens baseiam-se em arquétipos bem comuns desse tipo de sociedade. Ironicamente, tudo acontece graças ao uso crítico e político de um frívolo mecanismo de marketing (um outdoor). O jovem e já ganancioso publicitário Red (Caleb) é atraído pelo interesse puramente frio e calculista no lucro (e vai acabar pagando caro). O xerife Bill, por sua vez, de policial matuto e meio bruto, sempre com uma postura neutra-caótica diante do mundo, torna-se santo; servindo de força motriz por trás das motivações das personagens e das revelações mais bufonas do lado sombrio dessa sociedade. O veterano de guerra que surge na cidade e a mama Dixon são também, a seus modos, vítimas do discurso ideológico padrão, que rege as pessoas (especialmente veiculado pela mídia sensacionalista), eivado de agressividade, medo e paranóia, para manter o controle social.

Ainda, ao invés de ressaltar a imagem de esperança normalmente ligada ao frescor da juventude, através das personagens jovens ela retrata, sim, um futuro sem redenção, cujos únicos destinos possíveis são: sangrar, vítima dessa violência toda (Angela Hayes), ou quedar-se emburricado e fútil, incapaz de gerar qualquer mudança social (Penelope, interpretada por Samara Weaving, a néscia “namoradinha de 19 anos”), ou convalescer atônito, passivo, espectador envergonhado e imóvel diante da barbárie (Robbie Hayes).

Um traço comum de todas essas personagens é que ninguém consegue lidar com suas emoções de forma estável; nem o pacífico vendedor de carros, James (Dinklage), chamado de “anão” pejorativamente por toda a cidade, que passeia entre a catatonia e o alcoolismo como fugas da própria vida. Aliás, uma vida miserável é outro ponto de contato entre todas as personagens.
O tom positivo do final abre margem, ainda, pra uma análise mais fria acerca de toda a temática levantada pelo filme. Com o desfecho ele propõe o que aparenta ser o início de uma história de vingança. Ou seja, ao terminar, na verdade não bota um fim no ciclo de violência que movimenta toda a história e suscita as diversas piadas sarcásticas ao longo do filme, e sim sugere a sua continuidade. A própria maneira como o final é construído, assim, é bastante irônica: se ele é conciliador para as personagens e para a história do filme, para a realidade que ele discute não é nada conciliador, pois estabelece que a violência não termina ali, encerrada na tela.
Martin McDonagh imprime ao filme e ao roteiro um tom absolutamente escrachado. Consegue desenvolver um enredo dotado de humor negro e que lembra as melhores comédias satíricas e provocativas dos irmãos Coen. Ele levanta questões políticas e sociais delicadas e às vezes sem pudor algum as joga na nossa cara com fina ironia e escárnio.

O roteiro tem uma série de vicissitudes que o fazem inteligentemente bem escrito. Ele às vezes soa bobo, mas constrói personagens com complexidade e profundidade narrativa. Alguns plot twists e situações-choque são entremeadas por uma grande quantidade de situações clichê e conflitos resolvidos de maneira flácida e reviravoltas óbvias; resoluções baratas ou forçadas, ou exageros narrativos, flertando com o nonsense. Há também alguns diálogos expositivos que sobram na narrativa. No entanto, percebe-se que o roteiro tem a função de ser apenas um apoio para a real intenção da obra: discursiva.

Três Anúncios para um crime é um filme muito mais discursivo do que dramático. Isto é, quer mais levantar questões políticas urgentes e necessárias, e o faz através da encenação humorística, satírica, com gags, ao invés da encenação cinematográfica clássica. A narrativa, focada no humor, em alguns momentos suspende a construção dramática para soar como um esquete do Saturday Night Live – dadas as suas bem escritas e bem construídas piadas, na maioria criticando o atual momento político e social norte-americano.
Quando constrói o drama narrativo, entremeia os momentos humorísticos com explosões melodramáticas bem fracas (e.g. a interação de Mildred com o cervo) ou maniqueístas, as quais, entretanto, são bem sustentadas pelo ótimo trabalho de câmera e de fotografia, e pelo estupendo trabalho de atuação.

Não é um filme memorável, que vá ser lembrado por muito tempo além deste ano, e nem livre de falhas, porém, é um registro muito bem-vindo na história do cinema, de um momento, de uma época. Através dele, mesmo datado, fica registrado um retrato ácido e sarcástico de uma parcela da sociedade norte-americana atual que se destaca pelo conservadorismo de costumes e da religiosidade cristã fundamentalista, pelo racismo, xenofobia, homofobia, machismo, agressividade e preconceito para com as diferenças, e a qual, mais do que nunca saiu às claras após a eleição da figura detestável de Donald Trump (uma síntese personificada de todas essas boçalidades).

Como a diretora da Mostra, Renata de Almeida anunciou antes da exibição: “um filme que nos coloca na pele de um eleitor de Trump”. A obra talvez faça isso mesmo, mas assumindo o absurdo da realidade, revelando-o por uma sucessão de punchlines, esquetes e sátiras, recheadas de humor negro, colocando-nos mais numa versão lisérgica dessa mentalidade do eleitorado de Trump, concentrada neste recorte exagerado e quase nonsense de mundo que está encerrado na tela (talvez uma compilação da histeria coletiva e das surrealidades existentes de fato na nossa época).

Trailer:

FICHA TÉCNICA
Título: Três anúncios para um crime
Título Original: Three Billboards Outside Ebbing, Missouri
Diretor: Martin McDonagh
Data de Lançamento: 15 de fevereiro de 2018

Gui Augusto

2 thoughts on “Três anúncios para um crime [Resenha do Filme]

  • 17 de outubro de 2017 em 19:19
    Permalink

    Adorei a resenha desse filme, só me deixou com mais vontade de assisti-lo.
    Beijos.

    Resposta
  • 10 de fevereiro de 2018 em 20:44
    Permalink

    Gratidão pela linda partilha. O meu favorito ao Oscar 2018.

    Resposta

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