Os Despossuídos [Resenha Literária]
Os Despossuídos é talvez a obra mais famosa de Le Guin, e sem dúvida a mais desafiadora em termos intelectuais. É um livro de opostos: um romance utópico que não hesita em expor as falhas de sua sociedade modelo, uma narrativa feminista com um protagonista masculino, um comentário social que apresenta a cooperação comunitária como o ideal humano mais verdadeiro, mas se concentra na separação inevitável do indivíduo criativo dentro de tal estrutura. Por meio dessas dicotomias, a autora examina a tensão entre a aspiração humana e a natureza humana, entre o que pode ser sonhado e o que pode ser alcançado. Esse tema maior, junto com o domínio maduro, dá aos despossuídos uma universalidade que o impediu de se tornar obsoleto, apesar de suas raízes nas questões políticas de seu tempo (a contracultura comunitária do final dos anos 60 e início dos anos 70, o movimento original das mulheres).
O livro ocorre em dois planetas-gêmeos: Urras, um mundo exuberante que suporta várias nações diversas, e Anarres, a árida lua de Urras. Dois séculos antes do início da história, os seguidores do filósofo anarquista Odo, buscando uma alternativa à opressão e corrupção de Urras, estabeleceram uma sociedade utópica em Anarres. Os anarquistas no planeta não são os dissidentes da imaginação popular, apaixonados pelo caos, mas sim idealistas que acreditam que a maioria dos males humanos crescem vivendo sob governos, e que a única sociedade justa é baseada no compartilhamento comunitário, na tolerância mútua e cooperação voluntária. Em Anarres, não há leis, propriedades, governadores, nações, dinheiro, casamento, polícia, prisões.
Shevek é um físico que possui uma genialidade que aparece uma única vez em muitas gerações. O trabalho de sua vida é unir os princípios de Sequência (o tempo avança de maneira linear, como uma flecha) e Simultaneidade (todos os tempos estão presentes ao mesmo tempo; somos nós que nos movemos) em uma Teoria Temporal Geral que, entre outras coisas, tornará possível a comunicação instantânea através do espaço. Mas no ambiente de Anarres, ele não pode concluir este trabalho.
A única solução, que ele vê, é viajar para Urras, apesar do isolamento quase completo dos dois planetas, seu trabalho é conhecido e respeitado pelos Ioti, e eles estão ansiosos para ajudá-lo. Ele concebe sua jornada não apenas como uma maneira de concluir sua Teoria Geral, mas como uma missão de derrubar o muro que divide os dois mundos, para iniciar o processo de introdução de Anarres e seus ideais no resto do universo.
Em A-Io, Shevek é confrontado pelas diferenças entre as duas sociedades. Enquanto ele luta para assimilá-los, ele começa a ver que o paraíso que ele pensava ter encontrado é de fato uma prisão. A disposição dos físicos de Ioti em ajudá-lo decorre, não do amor ao conhecimento, mas da ganância de possuir o trabalho dele, de usá-lo para a vantagem de sua nação. Ele enfrenta um dilema impossível onde a moralidade toma conta de seu eu.
Os Despossuídos conta duas histórias separadas, em capítulos alternados: da vida de Shevek que levou à sua decisão de deixar Anarres e do que acontece quando ele chega a Urras. O capítulo final da primeira história se une ao primeiro capítulo da segunda, formando uma narrativa completa. Essa estrutura elegante, incorporando o conceito de Simultaneidade de Shevek, permite a Le Guin explorar o caráter do protagonista em grande profundidade e iluminar cada sociedade por sua discussão sobre a outra.
Enquanto Anarres é uma cultura totalmente inventada (Le Guin disse que estava tentando descobrir como uma sociedade anarquista funcionaria na realidade, e ela fez isso com impressionante precisão), a de A-Io tem uma semelhança com os Estados Unidos, com sua mídia histérica, seus rígidos papéis de gênero, sua política da Guerra Fria e seus grandes extremos de luxo e carência. Caracteristicamente, Le Guin não apresenta uma crítica direta a essa sociedade decadente. Sua condenação é certamente forte (é aqui que as raízes dos anos 70 do livro são mais aparentes), mas ela também se convence de maneira convincente de suas belezas e prazeres sedutores.
Igualmente, nas seções de Anarres, Le Guin retrata não apenas as forças e alegrias utópicas da vida em comunidade, mas os problemas que se acumulam na interseção do idealismo e da natureza humana: a pressão para a conformidade que é o outro lado da cooperação voluntária, o tácito poder político que se acumula a partir do exercício do costume, a desvalorização da capacidade criativa em uma sociedade baseada principalmente na necessidade prática.
Outro tema fortemente presente na obra é a maneira pela qual a verdadeira criatividade coloca um indivíduo em desacordo com a sociedade comunal. A insistência de Shevek em atender às demandas de seu intelecto prodigioso é considerada por seus colegas de Anarresti como “egoísmo”, uma vez que o leva a caminhos que seu povo não valoriza e coloca o esforço individual acima do bem comum. Shevek entende isso, mas o imperativo da individualidade criativa é absoluto; a cada momento em que ele coloca, apesar da dor que isso lhe causa. No final do livro, ele chega a uma conclusão: “Quanto menos ele possuía, mais absoluta se tornava sua necessidade.”
Os Despossuídos é um livro de leitura densa e nem sempre fácil. Ele foi escrito no estilo fluido e límpido característico dos trabalhos anteriores de Le Guin, mas a narrativa em si é um tanto didática, e o personagem de Shevek, embora explorado em grande detalhe, permanece distante (ao ler entendi as motivações da autora). Uma leitura profundamente interessante – sutil, desafiadora, requintadamente trabalhada. Em outras palavras, verdadeiramente uma obra-prima da ficção científica.
FICHA TÉCNICA
Título: Os Despossuídos
Autora: Ursula K. Le Guin
Nota: 5/5
Onde Comprar: Amazon
Olá, Natália.
Já fiquei confusa só de ler a resenha hehe. Acho que esse livro não é para mim não. Já ouvi falar muito da autora, até tenho um livro aqui na estante, mas nunca li nada dela.
Prefácio
Olá!
Gostei de conhecer a obra e saber que é uma obra densa de ser lida e digerida. Bom que antes de ler já vamos preparados para a leitura.
Beijocas.
https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/
Eu não conhecia esse trabalho da Ursula mas fiquei curiosa, principalmente como ela criou essa sociedade anarquista
Beijos
Balaio de Babados
Oi, Natália! Tudo bom?
Recentemente eu vi uns elogios ao tanto de tema e profundidade que tem nessa obra e fiquei muito curiosa, coloquei no carrinho quase na mesma hora. Tô esperando alguma promo, mas bem ansiosa pra conferir essa história.
Beijos, Nizz.
http://www.queriaestarlendo.com.br