Vida Fácil [Resenha do Filme]
Figurando na competição ‘Novos Diretores’ da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o primeiro longa-metragem do diretor Adam Keleman (quase um estreante na direção, com apenas dois curtas-metragens no currículo, de 2010 e 2012, depois de uma ampla carreira anônima em diversas funções do set) é um ambicioso salto no colo do circuito de festivais.
Vida Fácil é uma boa estreia, porém, é daqueles filmes que se perdem justamente onde menos podia: no terceiro e último ato. E isso pode ser fatal pra uma estreia tão promissora. A história é boa, a premissa é boa e Keleman teve a sorte de contar com a estonteante presença de Caroline Dhavernas – a atriz, além da beleza hipnótica que rouba por si só cada plano em que aparece, entrega uma performance extraordinária e muito competente.
Basicamente, o filme vale a pena por Caroline e a encarnação perfeita, com seus trejeitos e expressões faciais, que ela dá a uma personagem, a qual, por sua vez, já era muito bem construída pelo texto. Além disso, a câmera molda e favorece toda essa potência, emprestando um olhar intimista, que sabe o momento certo de entrar e sair dos enfoques aproximados de rostos e detalhes das personagens; uma fotografia “orgânica”, acompanhada de uma edição que evita uma dinâmica muito emotiva das elipses e uma trilha sonora bem dosada, escapando do melodrama barato.
Sherry Graham (Caroline Dhavernas) é uma revendedora autônoma de maquiagem; mulher, solteira e independente, lutando para sobreviver na classe trabalhadora sob a precarização, numa típica pequena cidade norte-americana. Na medida em que o filme se passa, no entanto, percebemos que a maquiagem da própria Sherry, atrás da qual ela tenta se esconder na vida, começa a dar sinais de desgaste. De repente, sua independência nada mais é do que irresponsabilidade e inconsequência.
Sherry parece não ligar, e nada parece atingi-la ou motivá-la a mudar uma vida errante e sem rumo – muito menos os apelos da irmã, Abby (Elizabeth Marvel, que talvez alguns reconheçam de House of Cards) para retomar o contato com sua filha, Alice (Taylor Richardson, a atriz-mirim que apesar do pouco tempo de tela mostra uma boa performance), quem não via há um ano, arrumar um emprego melhor ou formar uma família.
Mas passamos a perceber, também aos poucos, que é totalmente o contrário disso: Sherry não é insolente ou inadvertida, ela tem é muita certeza; ela se auto-induz a uma voluntária enganação, criando para si narrativas inspiradas nos livros de autoajuda corporativa (única leitura que compõe sua vida intelectual, e único passatempo fora a TV – esta que, inclusive, ela confessa: “não saberia como viver sem”), através das quais ela vive imersa em torpor e repetição de si mesma, totalmente anestesiada diante da vida.
Fumante compulsiva, uma alimentação deplorável e andando pra lá e pra cá com seu carro velho à la Saul Goodman, ela passa seus dias vendendo maquiagens de porta em porta e dando sorrisos amarelos para dondocas burguesas num bairro de classe média, que a entretêm com papos frouxos e conversas vazias de ocasião; e suas noites, afogando-se no alcoolismo (enquanto também se nega a voltar para as reuniões do A.A.) e fazendo sexo casual com homens jogados num bar feito restos da sociedade; Sherry é uma personagem cínica, que parece gostar um pouco dessa vida, ao mesmo tempo em que se sente culpada.
Mas reduzi-la a isso seria pouco. É uma personagem complexa, belíssima, rica em nuances. Ela também é romântica; e a cada macho-lixo com quem se deita aposta que será ele o seu futuro marido – mesmo que ela não esteja seriamente numa busca por uma família ou um marido.
Apesar da personagem caótica e totalmente perdida, ela é uma mãe que tenta com sinceridade de sentimento ser alguém pra sua filha; ela é contraditória, mas tem boas intenções; ela parece desamparada pelo mundo, mas é forte e decidida: Sherry na verdade faz o que quer, ela é livre, absolutamente livre. E quem somos nós para julgar sua liberdade?
Seu romantismo chega num ponto de quase alucinação quando tem certeza que pode conseguir um empréstimo no banco, mesmo que tenha nada mais do que uma movimentação de conta lamentável, fundos escassos e promessas que mal enganam a si mesma para oferecer a seu gerente (a quem tentar convencer, ainda, atirando alguns flertes que saem pela culatra).
‘Romantismo’ porque o empréstimo é para concretizar um sonho que decidiu tornar realidade agora: vai abrir um salão de beleza, com a certeza de que assim tomará controle de sua vida, tendo um emprego mais sólido e botando em prática o projeto idílico de empreendedorismo, com a receita de sucesso individual aprendida nos manuais de autoajuda.
Algumas transições entre cenas são acompanhadas dum voice over da própria Sherry lendo trechos de seu profético livrinho; narrados num tom quase sarcástico, profundamente compenetrado nas lições empresariais de salvação. Quando o filme entra no terceiro ato, finalmente as frases de autoajuda são justificadas pela realidade, mas de um jeito que ninguém esperava, nem nossa protagonista. Ela soube “ver a oportunidade” ao “estar na hora certa e no lugar certo” de um jeito bem peculiar…
O roteiro e a montagem evidenciam o bom domínio do enredo, a trama flui bem até aí. Nesse momento de conclusão é que o filme se perde. A estreia de Keleman atrás das câmeras é ambiciosa porque ele nos entrega um filme bem conduzido em todos os seus aspectos técnicos, entrega uma personagem forte e nuançada, encontra a atriz perfeita para o papel; no entanto, parece ele mesmo, tal qual sua personagem, enganar-se com seus sonhos de grandeza, e ao tentar executar uma ideia mirabolante para um plot twist perde o ritmo.
A sensação é de uma certa angústia: gostamos tanto do filme que ao final queríamos gostar mais. O olhar humanizado e cru para retratar relações e jornadas de personagens tipicamente norte-americanas (produtos de um american dream frustrado) diante das vicissitudes desse universo, lembra os filmes de Richard Linklater ou a visão analítica sobre o cotidiano de um Robert Altman. A trilha sonora agradável e o humor dotado dum leve sarcasmo lembra uma boa comédia dramática de costumes, como “Tomates Verdes e Fritos”. Ainda, algo na ambientação nos remente a uma atmosfera nostálgica de um filme para TV, daqueles dos anos 90.
A sua conclusão, no entanto, não se encaixa com nenhuma tonalidade que o filme vem construindo até então ao querer flertar com o absurdo (o que é sempre uma proposta interessante), mas disso não aproveitar muito à narrativa. Fica uma conclusão meio apressada, com adição tardia de personagem à trama, e um deus ex machina que parecia bom demais na cabeça do diretor (e roteirista), mas na prática saiu derrapado.
Aprendemos com a história que Sherry é mais um ser humano falho, contraditório e que acaba vencendo na vida só mesmo por uma solução sub-reptícia (e, mesmo assim, inesperada). Ela é como tantos existentes no dia-a-dia, sempre os primeiros párias sociais a serem acusados de querer uma “vida fácil” (justamente por aqueles cuja vida é fácil e confortável demais), enquanto se matam de trabalhar em empregos sucateados, instigados a acreditar na falaciosa lógica do trabalho meritocrático (e não têm tempo e nem dinheiro para viver seus sonhos verdadeiros).
Paralelamente, a todo tempo o mundo ao seu redor tenta lhe encaixar num modelo, que não basta para pessoas como ela (dotadas duma potência e duma vivacidade arrasa-quarteirões). Família, casamento, responsabilidades típicas de uma vida média, nada disso define Sherry Graham; seu único caminho então é se autodestruir, enquanto com simplicidade, um mínimo de generosidade e as poucas ferramentas que a vida lhe concedeu, ela consegue tomar seu rumo tortuoso.
Trailer:
VIDA FÁCIL (EASY LIVING), de Adam Keleman (80′). EUA. Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 16 anos.
CINESESC 19/10/17 – 20:40 – Sessão: 26 (Quinta)
CINEARTE 1 20/10/17 – 15:45 – Sessão: 97 (Sexta)
CINUSP NA ECA – USP 30/10/17 – 19:00 – Sessão: 1136 (Segunda)
Gui Augusto