Um Judeu Deve Morrer [Resenha do Filme]
Fazendo parte do “Foco Suíça” dessa 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Un Juif pour l’exemple, da seleção oficial do festival de Locarno, é o longa de 2016 do diretor inglês Jacob Berger, que traz, dentre nomes desconhecidos no elenco, o estelar ator alemão Bruno Ganz (intérprete da mais impressionante personificação de Hitler nos cinemas, no filme A Queda, de 2004 – cujo uma cena até virou meme). Os atores mais desconhecidos também são ótimas escolhas, e extremamente competentes, com destaque para Aurélien Patouillard, excelente no papel do psicótico mecânico Fernand Ischi.
Ganz, no extremo oposto de seu célebre papel como o nefasto dirigente alemão, aqui incorpora Arthur Bloch, um comerciante judeu, patriarca de uma família que vive na modesta cidade rural de Payerne, Suíça, durante a segunda guerra mundial. Apesar de formalmente a guerra não ter chegado lá ainda, brotam até naqueles confins simpatizantes do simbolismo e da ideologia nazista – que, mesmo minoritariamente e de maneira não oficial, tentam impor sua visão naquela comunidade, e quem sabe imprimir seus nomes na história (do lado errado dela), no desejo de serem reconhecidos pelo próprio Hitler.
Em 16 de abril de 1942, uma quinta-feira, um judeu é brutalmente assassinado então, para servir de exemplo; e funcionando como um triste anúncio de que até ali, naquela cidadezinha pacífica e rural, sombrios tempos se avizinhavam.
Apesar de na época a Suíça não ter se envolvido na guerra e nem ter sido invadida ainda pelos exércitos do III Reich, o país não queria se envolver de qualquer modo, nem dando abrigo aos judeus (talvez por medo de, em sua posição geográfica, ser interpretado como um obstáculo à temível máquina de guerra nazista), mas nem compactuando com a perseguição direta a este povo.
Essa posição neutra e até acovardada, perdida numa zona de indecisão, em cima do muro da História, é muito bem representada na melancolia e frieza (inclusive da paleta de cores) de cenas em que judeus fugidos da guerra são enxotados, com pavor e sob tiros para o alto, nas fronteiras da cidade por oficiais suíços da própria guarnição local. Inclusive, o filme não à toa inicia-se com justamente uma dessas cenas. É a forma também de anunciar logo no começo que estamos a ver um mundo cão; injusto, baixo, sujo e, especialmente, sem redenção para os oprimidos.
Um outro tipo de oprimido é o escritor Jacques Chessex. Um artista suíço, não-judeu, nascido em Payerne e que em 1942 tinha oito anos de idade. Ele foi testemunha ocular do crime que chocou a cidade. Chessex então decidiu colocar sua terra natal nos anais da História (só que do lado certo dela), através do livro homônimo que deu origem a este filme, publicado em 2008. No entanto, por este motivo o autor foi massacrado pela crítica, considerado oportunista e de mau gosto, pela maneira crua e realista como romantizou a história; até morrer, poeticamente, de ataque cardíaco durante uma coletiva de imprensa, em 2009, sem poder responder mais uma das acusações…
A segunda sequência, após a introdução, é justamente Chessex sentado num lugar vazio, ascético e claro, oprimido pela solidão e o silêncio, ouvindo num headphone críticas descascando o seu livro. É genial como primeiramente conhecemos sua obra e a história do próprio filme através das críticas negativas ao livro. E o mais surpreendente: nenhuma é improcedente; apesar de se basearem em valores morais subjetivos dos críticos sobre o que é boa ou má arte (e a seleção especificamente dessas críticas colocadas na tela pelo diretor para ouvirmos – e julgarmos – não é por acaso).
O escritor teve uma vida controversa, esta não foi a única publicação ou peça que escreveu recebida de forma polêmica pela crítica. Mas o filme tem uma opção interessante e sensível de fazer uma justiça histórica a Chessex; o diretor, talvez um admirador de sua obra, decide por vezes quebrar a quarta parede e apresentar o escritor dentro de sua própria obra, entremeando a história do livro com a própria história de vida do escritor na narrativa do filme.
O tempo curto de apenas 1h12m de duração pode soar insuficiente para pretensões tão abrangentes, mas é só mais um trunfo do filme a maneira como consegue enlaçar o enredo ao tempo com perfeição, enxuto de sobras narrativas ou dramas desnecessários, incluindo conflitos e personagens realmente relevantes e os desenvolvendo nos limites justos para a história. Há um exemplar domínio da narrativa, tanto visual, quanto escrita.
Ainda por cima ele consegue extrair a essência da obra de Chessex e talvez dar-lhe a voz que não teve em vida para se defender, demonstrando ao público as reais intenções do escritor. O mais interessante da sua visão é uma rara perspectiva do genocídio e dos horrores do holocausto por um olhar externo, isto é, de alguém que não tem ligação cultural com o povo judeu.
A história é limpa de maniqueísmos, de maneirismos melodramáticos ou de clichês, em prol de apresentar um retrato objetivo, direto e cru de algo mais profundo, que vai mais além da específica violência antissemita: o filme (e talvez o livro) é um olhar assustado, silencioso e atônito sobre o ódio humano.
Com ele e com suas personagens levanta-se a reflexão de como o ódio nasce e se dissemina (principalmente quando tem por trás uma ideologia e uma influência poderosos). Por isso ele não hesita em ser direto e literal na hora de mostrar a violência se manifestando – numa cena lírica e poderosa, em som e imagem, ao invés de simplesmente chocante.
Construindo uma história rica e profunda em discussão, o roteiro ainda é altamente competente em conduzi-la com suspense e apreensão, e quebrar em momentos cirúrgicos a narrativa realista usando a fantasia e um surreal diálogo intertemporal. E este diálogo não é também à toa. Esta pequena peça de horror, e um escritor que tentou ser calado em plena atualidade por defensores da moral e do politicamente correto ao mostra-la nua e chocante como ela é, representam a urgência dos tempos em que livro e filme surgem: se não discutirmos abertamente e sem tabu o horror, ou calarmos quem tentar falar disso, estamos fadados a repeti-lo (e medidas cinicamente neutras ou “sem partido” por aí muitas vezes querem exatamente isso mesmo).
Um Judeu Deve Morrer é uma história absolutamente necessária de ser assistida em tempos como os atuais, quando a extrema-direita ganha força no mundo e o neonazismo e o fundamentalismo fascista varrem não só a Europa, como o mundo (e Brasil, inclusive). Seu olhar cru e cirúrgico, ao mesmo tempo poético, expõe a moral torta, perversa e incoerente de conservadores extremistas, desesperados para esconder suas próprias falhas humanas ou o próprio desejo perverso e quase sexual pela repressão.
O filme é um competente, embora pequeno, retrato do fascínio que o ódio opera (e parafraseando Humberto Gessinger: “o fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante fascinada”). Ele destaca como o discurso do medo ou a sedutora retórica das narrativas psicológicas do ódio podem convencer de camponeses a jovens da classe trabalhadora de um país.
O diretor não faz como em vários filmes de segunda guerra e não nos traz mais do mesmo, uma mera contemplação estética do horror que se decorreu; no seu curto tempo ele com eficiência se propõe a lançar nosso olhar mais além: a disseminação do ódio quando o ovo da serpente já eclodiu. E através do anacronismo nos lança também mais aquém: no passado, para espiarmos com exclusividade o realismo cruel dum momento desses do frigir do ovo (clamando para, quem sabe, ajustarmos o foco do nosso olhar sobre o próprio presente).
Sessões:
UM JUDEU DEVE MORRER (A JEW MUST DIE), de Jacob Berger (73′). SUÍÇA. Falado em francês. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 16 anos
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 2 24/10/17 – 18:00 – Sessão: 544 (Terça)
RESERVA CULTURAL – SALA 2 25/10/17 – 20:00 – Sessão: 644 (Quarta)
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 3 26/10/17 – 19:50 – Sessão: 651 (Quinta)
Mais informações: http://41.mostra.org/br/home/
Gui Augusto