The Square [Resenha do Filme]

Um diretor badalado da atualidade é o até que jovem (de carreira) Ruben Östlund. O sueco dirigiu alguns filmes premiados em grandes festivais, como o De ofrivilliga (2008), Play (2011) ou o seu talvez mais famoso aqui no Brasil, Força Maior (2014). Com The Square (2017) não está sendo diferente. O filme tornou-se uma instantânea sensação nos principais festivais, ganhou a palma de ouro em Cannes este ano, e tem sido quase unanimemente exaltado na nossa 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, apresentado na ‘Perspectiva Internacional’.
Tanto sucesso vem do exemplar domínio narrativo que o diretor tem em seu filme. Usa com liberdade o humor negro e os momentos de risos constrangidos que explodem involuntariamente das nossas entranhas em algumas cenas. Constrói excelentes diálogos provocativos e envolventes. Constrói situações absurdas e irônicas com destreza.
A história aqui contada é sobre Christian (Claes Bang, excelente no papel), um artista conceitual que cria instalações e exposições baseadas em ideias tidas como politicamente e socialmente engajadas por um específico circulo de elite de apreciadores de arte – mas vindas de um artista que, tal qual seu seleto público, jamais saiu do conforto de seu próprio “quadrado” social burguês para querer entender problemas sociais. Um estereótipo bem recorrente, aliás. 
Sua mais nova instalação é um quadrado, espaço que classifica como “sagrado” e onde “dividimos direitos e obrigações iguais” (apesar de ser minúsculo e ironicamente mal caber umas dez pessoas ali). Isso toma uma conotação especial num país onde o afluxo de imigrantes nos últimos anos tem levado a vicissitudes sociais reais e sérias, com as quais a própria sociedade sueca (e europeia) não tem sabido lidar – das piores maneiras.
A equipe contratada para cuidar do marketing e divulgação da nova obra, à qual ele terceiriza a tarefa enquanto se perde em questões existenciais negligenciando completamente a responsabilidade sobre o próprio trabalho, acaba fazendo uma campanha publicitária agressiva, para “viralizar” na internet. Quando tudo sai do controle e Christian volta a si, já é tarde.
Christian tem boas intenções, mas não se apercebe como incapaz de representar uma outra classe social a partir do seu ponto de vista subjetivo, limitado a sua própria condição de existência. O choque se dá quando é assaltado por moradores do subúrbio da cidade, e ele é confrontado com a realidade que nunca conseguiu representar mais do que como pastiche em sua “arte”. Ele fica mais maravilhado e curioso do que enraivecido com o ocorrido, e tenta resolver a situação com a mesma falta de noção da realidade e inocência até pueril, como se estivesse admirado pela nova “civilização” descoberta.
O filme faz um sarcástico comentário sobre a hipocrisia do discurso tolerante, do discurso caridoso e do discurso bem intencionado. Da visão deturpada sobre “o outro”, especialmente se ele vem de classes sociais menos privilegiadas. De uma noção pequeno-burguesa pretensiosa que intenta representar o outro tirando seu poder de voz e emancipação, enquadrar este outro num ideal de vida próprio do observador, em geral romantizando ou estetizando a pobreza e as mazelas sociais (neutralizando a potência crítica, enquanto a xenofobia e o preconceito reais varrem uma sociedade).
É muito fácil (e sedutor) querer respostas simples para problemas sociais complexos. E sobre quem pensa assim que este filme fala; aliás, é deles que ele ri. Por outro lado, as personagens vitimadas por esse altruísmo falso moralista são claramente os imigrantes, encarnados aqui em moradores de rua, mendigos e habitantes do subúrbio da cidade (onde Christian vai com um misto de ansiedade, empolgação e medo; como se estivesse visitando um safari). Uma extensa classe pobre hoje existente em países de “primeiro mundo” como a Suécia é formada quase que unanimemente por imigrantes.
A linguagem do filme é absolutamente sarcástica, o que resvala inclusive na sua estética e cenografia – especialmente ao pintar “o outro”. Premiações e encontros dão-se em típicos habitats da elite, comemorações que acontecem nos antigos aposentos reais da Suécia, um grande jantar de lançamento que acontece numa construção de arquitetura aristocrática; cenários que remetem a séculos duma violenta colonização empreendida pela Europa no mundo, justificada por teorias antropológicas pretensamente cientificas (irrefutáveis à época) que distinguiam a sociedade europeia das sociedades colonizadas (especialmente africanas) por um critério necessariamente genético, afirmando a superioridade racial do europeu frente as outras, consideradas “selvagens”.
A selvageria é ironizada diversas vezes no filme, encarnada em personagens, de forma literal ou sutil, como no imperdível Oleg (Terry Notary), representação mais direta do primitivo vindo buscar o recibo da barbárie produzida pela sociedade “superiora”, numa espécie de acerto de contas histórico, radicalizando e invadindo os espaços do velho colonizador, só para terminar respondido também com selvageria (dos ditos civilizados).
Oleg é a própria dicotomia do tratamento dado ao imigrante pelo europeu e vice-versa. É a encarnação do medo e da violência, caso fossem literais e justificáveis os motivos da elite europeia para o preconceito e a xenofobia. Aliás, alguns planos de um Christian solitário numa sala escura como se estivesse absorto dentro de sua própria consciência, com uma videoprojeção dum bestial Oleg projetado gigantesco ao fundo, talvez queira dizer que todos nós, até Christian, somos bestas-feras no fundo escuro da consciência.
Para nós, aqui no Brasil, o “selvagem” é o próprio brasileiro; outro aqui mora em favelas, periferias e é o negro, índio e nordestino (os filhos mais antigos do Brasil; imigrantes e colonizados de outrora). A temática discutida pelo filme sueco é universal, pois aqui ou lá, a sociedade se baseia na divisão entre “nós” e “um outro”. Um “outro social”, classificado como um selvagem e muitas vezes até como um inimigo a ser eliminado. O pária que choca e incomoda ao adentrar e “invadir” os espaços típicos das burguesias: a maior subversão que se pode cometer (sejam os rolezinhos em shopping centers de bairros nobres, seja um Oleg barbarizando o jantar dos ‘nobres apreciadores da alta cultura’).
Com sua habitual ironia, no filme temos várias dessas subversões, provocando o olhar da audiência e gerando as reações mais díspares: do constrangimento a seriedade; o que é, na verdade, hilário. Um destaque é a cena do homem com síndrome de Tourette (mania obsessiva de falar palavrões em público) desestabilizando o equilíbrio emocional dum ambiente controlado e administrado do ego e duma frágil tolerância com a provocação desse conforto.
The Square ainda nos põe a discutir sobre o individualismo, o egocentrismo, a insegurança (moral e emocional – como alguém que até de seus próprios dejetos tem medo de se desfazer). A arrogância intelectual de porta-vozes da cultura e da arte; o completo desprezo da classe trabalhadora (em tese, a classe representada pelas obras artísticas socialmente comprometidas), como a jovem estagiária e seu olhar insolente e displicente cuidando da entrada do museu, ou os funcionários sentados solitários em melancólicas cadeiras nesses espaços de cultura em geral sempre vazios (só mesmo visitados por desavisados, convidados em noite de inauguração ou turistas), ou funcionários que interagem com a obra com o pragmatismo de quem só entra nesses ambientes mesmo para trabalhar (limpar um chão, por exemplo).
A ânsia pela viralização, pelos views; a monetização da liberdade criativa e artística em espaços dantes democráticos na internet (e.g. Youtube); a completa apropriação pela lógica competitiva e capitalista do ambiente digital, ameaçando a liberdade e a originalidade da expressão artística humana; um jornalismo que só busca polêmicas e explora as questões mais superficiais para vender jornal e ganhar audiência mesmo quando fala de arte; a frivolidade da fama. São ainda mais questões suscitadas pelo ácido discurso do filme.
Apesar de o roteiro ser o ponto alto da obra e todo o seu aspecto discursivo ser muito bem escrito e encaixado na trama, há uma falha na narrativa, especialmente quando o filme entra no terceiro ato, momento em que passa a se tornar arrastado e perdido, até culminar numa conclusão insatisfatória, apelando para a conveniência e o bom e velho recurso do final aberto (que aqui não funciona muito bem, soando mais como fuga do compromisso de um desfecho criativo e competente à altura do que o filme vinha sendo até então).
Situações tragicômicas desafiaram o protagonista ao longo de toda a trama, e cada vez que imergiu num mundo tão distinto do seu, mais confuso e sem respostas ele ficou. Christian vai do luxo ao lixo e acaba perdido em seu existencialismo. Um olhar de sua filha pequena é mais significativo do que a sua racionalidade adulta; lembra a canção de Erasmo Carlos, na qual ele diz que o adulto é “uma criança e não entende nada” e a criança entende tudo. A criança parece compreender melhor do que o pai o confronto com o diferente: ela que tem ainda o olhar naturalizado e desconstruído sobre o outro; ela que vê seres humanos ali onde adultos vêm selvagens.
A demagogia de uma alta burguesia aculturada que se considera culta sem sequer de fato apreciar cultura (e ignorar seu potencial mais elementar: crítico); conservadores cagando regra sobre arte; uma arte que se pretende engajada e socialmente correta, mas não passa de exercício ególatra de pura arte pela arte. A estetização que afrouxa e banaliza a realidade crua e pragmática como ela é. Östlund, talvez sem querer, nos entrega em filme um sarcástico manifesto de materialismo dialético derrubando romantismos contemporâneos.
THE SQUARE (THE SQUARE), de Ruben Östlund (142′). SUÉCIA, ALEMANHA, FRANÇA, DINAMARCA. Falado em inglês, sueco, dinamarquês. Legendas em português. Indicado para: 14 anos.
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 3 25/10/17 – 21:20 – Sessão: 550 (Quarta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 27/10/17 – 17:20 – Sessão: 818 (Sexta)
CINEARTE 1 29/10/17 – 21:15 – Sessão: 1000 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 30/10/17 – 19:20 – Sessão: 1150 (Segunda)
CINESESC 01/11/17 – 19:10 – Sessão: 1309 (Quarta)
Gui Augusto

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