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Minha vida de abobrinha

Minha Vida de Abobrinha é uma leve e gostosa animação em stop-motion, que aposta na simplicidade, e faz o gênero “bonitinha, mas melancólica”; quem sabe do que se trata, vai amar; quem nunca se aventurou por esse tipo de enredo “mais sombrio” em animações, pode acabar se apaixonando. Uma coisa é certa (para qualquer categoria de cinéfilo): lágrimas vão rolar.
Este foi o escolhido oficial pela Suíça para disputar o prêmio de Melhor Filme de Língua Estrangeira no Oscar 2017, mas vai acabar disputando apenas o prêmio de Melhor Animação na competição. Teve sua estreia mundial na Quinzena dos Realizadores, em Cannes (é o primeiro longa-metragem de Claude Barras), e foi ovacionado de pé pelo público. Fez carreira e sucesso em festivais de animação pelo mundo todo – temos aí um concorrente de peso.
Falado em francês (uma das línguas oficiais na Suíça), ele conta a história do pequeno Icare, o Courgette, ou Abobrinha (ou seria Batata?), permeada de tragédias e descompassos muito grandes para uma criança entender. Pode remeter um pouco ao enredo de Desventuras em Série (série de livros, filme e agora série televisiva na Netflix), porém, de maneira bem mais visceral, realista e dura do que uma trama cheia de aventura e fantasia.
O adorável garotinho de 09 anos de idade (adorável, inclusive, esteticamente, devido ao primor com que são feitos os fantoches) acaba de perder a mãe em circunstâncias bizarras (uma motivação até duvidosa para a história, de tão exagerada, mas talvez um exagero perdoável diante da real intenção narrativa). Instantaneamente ele é empurrado para a vida da orfandade e tudo o que conhece como lar, família, carinho até então é brutalmente rompido. Pelas circunstâncias da vida ele será forçado a conhecer o compassivo policial Raymond e um grupo especial de crianças num orfanato, cujos aos poucos constituirão sua nova visão de mundo (sempre relatada em desenhos à lápis de cor pelo próprio Abobrinha).
Do pai ele guarda somente uma lembrança: uma pipa, com o desenho de um homem adulto vestido de super-herói de um lado, e do outro, uma galinha, pois “o pai gostava muito de galinhas”. Da mãe, ele herdou uma latinha de cerveja (ela era alcoólatra) e o próprio codinome Abobrinha, não se explicando se era pejorativo (o que fica sugerido) ou carinhoso. Mesmo os resquícios de uma relação defeituosa com a mãe (como brevemente retratado) são mantidos com carinho por Icare.
Só o simples plano-detalhe na pipa, sabendo de todas essas informações já é de rachar o coração – e sim, o filme é duro nesse sentido, mas cada olhar e cada enfoque na inimputável expressão facial de Abobrinha são também um oásis de suavidade por nos lembrar da inocência de uma criança perante o sofrimento real.
Um enredo emocionante e “fofo” traz em subtexto questões mais sérias. Dois temas recorrentes (pelo que tenho percebido) em filmes europeus contemporâneos estão aqui: um, a situação dos imigrantes, o outro, a solidão. Mas também são abordados o abandono, a definição de estrutura familiar, a adoção como mecanismo legítimo de filiação. E questões específicas de cada um desses temas também são tocadas, como por exemplo, a família monoparental; ou a dificuldade de se adotar uma criança “na idade deles” (em torno de 9, 10 anos), mais “velhas” e em geral preteridas, porque os adotantes preferem a criança mais impúbere possível.
Às vezes numa fração de segundo, num diálogo, um tema desses surge, e já provocando reflexão (e.g. Simon contando as histórias dos orfãos). Porém, o filme não é discursivo. Traz temas típicos de um drama social, mas ainda no bojo de uma animação infantil – ou seja, numa atmosfera tênue (e mais emotiva) –, com naturalidade interpostos à trama principal simplória de uma criança em contato com o mundo e suas agruras, e as descobertas da primeira vida em sociedade, como as amizades, o primeiro amor, as dificuldades do abandono e da solidão.
Há um equilíbrio, inclusive, do melodrama. Se um choro sai, ele é provocado mais por toda a conjunção dos elementos, de forma inteligente e concatenada com o roteiro, do que pela exploração de alguns deles, como música triste alta, caráter exagerado de personagens, dentre outros que felizmente não estão aqui.
Aliás, o nosso ótimo brasileiro O Menino e o Mundo parece estar fazendo escola pelo mundo afora: é inegável alguma similaridade deste filme com “Abobrinha”. Em especial a trilha sonora, nos remete bastante à atmosfera lúdica da animação brasileira, pela escolha de uma sonoridade minimalista e agradável. Embora em questões de roteiro os dois filmes se distanciem, toda a simplicidade e sutileza (e beleza) com que são conduzidos é um ponto comum.
A qualidade da animação salta aos olhos. É possível esquecer-se em alguns momentos que se está assistindo a um “filme de criança”. Além disso, a construção dos cenários e dos bonecos de massinha, muito bem realizada, a sonoplastia e o trabalho de dublagem ambientam-nos num um filme live action – aliado a solidez de um roteiro, ainda que leve, sério, sem explorar demais certa “infantilidade”.
Às vezes até cenas insólitas como a de crianças dançando ao som de um alt rock alemão melancólico numa espécie de balada improvisada numa cabana no meio da neve surgem na tela (só os indies mais tristes curtindo sozinhos uma balada na rua augusta em São Paulo numa noite fria entenderiam o peso desta sensação), lembrando um cenário depressivo-fofo ainda não destoante de histórias infantis, aliado a um tom suave, ao melhor estilo Peanuts.
O roteiro é outro ponto de destaque, pela sua coerência e contenção. Figuras arquetípicas como a do orfanato cruel e da criança bully, quem bem podia ser o vilão, são atenuadas, numa demonstração de maturidade do roteiro, que abre mão do maniqueísmo padrão desse tipo de história em favor de uma complexidade de sentimentos e comportamentos muito mais próxima da essência humana.
Abobrinha vai encontrando seu lugar ao lado das outras crianças, cada uma também enfrentando uma barra maior do que pode compreender, e estão ali simplesmente vivendo. O filme tem uma mensagem calcada na solidariedade e nos encontros aleatórios que a vida por vezes nos impõe. Se há esperança, ela existe na comunhão, nos encontros, na compaixão, na rede de pessoas se ajudando e se entendendo. Por pior que o outro pareça ser ou mais diferente do “Eu” que ele seja, ainda o amor vencerá, uma vez transpostos os difíceis obstáculos do orgulho e da vaidade humanos. A união só que salva, por ser mais forte do que qualquer tragédia. Esta é a mensagem mais bonita e proveitosa da história.
Apesar de tudo, Abobrinha gostaria de ter ainda a mãe. Gostaria de estar no que se chama de casa, com o que se chama de família. Porém, ironicamente a tragédia que a vitimou foi também chave de liberdade do menino, uma liberdade que ele jamais pensaria em experimentar. Sua precoce orfandade vai aos poucos dando lugar a descoberta de que lar é onde se sente bem e família é estar com quem se ama, indo além das convenções biológicas ou sociais básicas.
Ao cabo, uma história doce em que policiais e juízes são sensatos e amigos das crianças e do Amor soa até como fantasiosa, impossível demais. Porém, esta utopia tem seu propósito em todas as histórias onde esteja presente, e a dessa, baseada num romance de 2002, Autobiografia de uma Abobrinha (em tradução livre, ainda sem tiragem no Brasil ou em língua inglesa), de Gilles Paris, vem nos ensinar uma lição de otimismo e resiliência digna do inesquecível samba Volta por Cima, de Paulo Vanzolini, e que as possibilidades de amor no mundo residem até no inesperado. Sem ocultar as crueldades e o lado feio da vida, sabe divertir, entreter, emocionar e ainda entregar uma mensagem positiva de esperança bastante convincente.
Trailer:


FICHA TÉCNICA
Título: Minha vida de abobrinha
Título Original: Ma Vie De Courgette
Direção: Claude Barras
Data de lançamento no Brasil: 02 de fevereiro de 2017
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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