A Mão Esquerda da Escuridão foi meu primeiro contato com a Ursula K. Le Guin, e foi uma leitura impressionante, um livro que ganhou vários prêmios inclusive o Hugo, não poderia ser ruim.
O livro nos apresenta uma realidade em que a narrativa pode nos ajudar a questionar as ideias sobre gênero e sexualidade que foram transmitidas a todos nós desde a infância. E também nos entrega um convite um pouco diferente, baseado no entendimento do funcionamento interno das sociedades e das pessoas.
Genly Ai, um enviado da federação de mundos humanos chamado
Ekumen, documenta suas experiências no frio e alienígena mundo de Inverno (ou
“Gethen” para a população local). Nos primeiros dois anos de sua missão no reino de
Karhide, Ai se depara com suspeita, descrença e medo avassalador. O povo de Gethen não apenas desconfia do que eles percebem como grandes histórias de navios que voam e mundos além dos seus, mas também ficam com medo quanto à fisiologia de Ai.
Todas as pessoas em Gethen são andróginas, sem um gênero designado, exceto uma vez por mês quando entram no kemmer (em um ciclo hormonal semelhante ao período menstrual de uma mulher) – e no kemmer, um getheniano pode assumir o sexo feminino ou masculino de forma totalmente aleatória (ou seja, alguém que era mulher por um mês pode ser homem no próximo
kemmer mensal).
Genly Ai, com sua sexualidade masculina única e permanente, é marcado como um “pervertido” ou uma anomalia. No nível mais básico e fundamental, nem o povo de Gethen nem Ai podem se entender. O protagonista enfrenta muitos desafios em sua missão no mundo gelado de Genthen, mas sua maior luta é para entender uma sociedade de pessoas que são neutras em gênero na maioria das vezes, exceto quando vão no kemmer. Nas mãos de um escritor comum, essa abordagem de gênero seria um caso interessante. Porém, Le Guin vai muito mais longe, construindo um mundo inteiro que parece tão rico e é inegável que o kemmer, e tudo o que o acompanha, parece uma característica real de uma sociedade que existe. Ela faz isso com milhares de detalhes adoráveis e um tom animado e conversador, mas também incluindo muito folclore e ditos genéticos, que se entrelaçam em algo que parece maior do que apenas uma ficção.
O livro foi publicado há cinquenta anos, mas ainda tem tanto poder quanto em 1969. Talvez ainda mais, porque agora, mais do que nunca precisamos de sua história principal: duas pessoas aprendendo a se entender, apesar da cultura, barreiras e estereótipos sexuais. Genly Ai não confia em seu principal aliado em Genthen, e eles continuamente não conseguem se comunicar, mesmo que as coisas piorem cada vez mais. Le Guin capta perfeitamente as armadilhas da comunicação através das culturas: a maneira como as pessoas se falam e aprendem os significados de todas as coisas.
Além da história edificante dos protagonistas construindo uma amizade, o livro está impregnado de um otimismo corajoso e necessário que precisamos ter no momento atual em nossa sociedade. Todos nós podemos fazer uma jornada difícil e confusa cheia de ignorância que nos permite desenvolver uma melhor consciência, podemos também enxergar que o compartilhamento de conhecimento entre diferentes culturas levará ao avanço da ciência, e estamos caminhando para finalmente entender que a espiritualidade e a curiosidade científica podem andar de mãos dadas.
O maior elogio que posso conceder à essa obra é que a autora capta a textura da vida. Este livro está cheio de pequenos momentos, pedaços de sensação e emoção, que mostram como é estar vivo, dia após dia. Algo sobre a bondade e curiosidade em sua escrita nos permite ver todos os pequenos prazeres e desconfortos, da luta sem fim ao alívio ocasional da vida.
Ficar tão imerso em uma sociedade sem homens e mulheres pode ser uma experiência libertadora para àqueles que ainda vivem em um mundo de rótulos. A maior mentira que a sociedade nos diz sobre gênero é que as identidades que recebemos no nascimento são naturais, onde essa mesma sociedade critica o que é “diferente”. Grande parte do valor desse livro é que ele permite que você imagine que as coisas podem ser muito diferentes. E então, quando você volta ao mundo real, traz consigo a sensação de que podemos escolher nossa própria realidade, e o mundo é nosso para remodelar.
O livro é surpreendente. Com ideias maravilhosas e momentos emocionais marcantes, a linguagem de
Le Guin nos surpreende com seu poder e maravilha. Todos os detalhes do livro têm pequenas histórias incorporadas, e essas histórias se cruzam e se constroem e nos permite perceber que nossa vida é feita de histórias.
Gênero, sexo, romance, desejo, poder, nacionalismo, opressão – são apenas histórias que contamos a nós mesmos. E podemos contar histórias diferentes se quisermos.
A Mão Esquerda da Escuridão é tão importante – ou até mais importante – hoje em dia quanto em 1969. Revolucionário, perspicaz e instigante, um clássico que deve ser apreciado, discutido e dissecado por todos.
Título: A Mão Esquerda da Escuridão
Autora: Ursula K. Le Guin
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Oi, Natália! Tudo bom?
Eu sou LOUCA por esse livro e agora por essa edição maravilhosa. A Úrsula é um marco na literatura e tudo que ela escreve é ouro KJANSOUFSABGSOAUBGSA algum dia terei!
Beijos,
Denise Flaibam.
http://www.queriaestarlendo.com.br
Oi Natália, tudo bem?
Não conhecia o livro ou a autora, mas fiquei curiosa e com vontade de conhecer melhor a trama.
*bye*
Marla
https://loucaporromances.blogspot.com
Olá,
Que premissa interessante. Gênero e a vida. Tenho muita curiosidade em conhecer as obras da autora.
até mais,
Canto Cultzíneo
Olá, Nat
Que sensacional que um livro publicado há tanto tempo aborde assuntos como gênero e sexualidade. Não conhecia este livro da autora, mas achei super interessante!
Beijos
- Tami
https://www.meuepilogo.com
Oi Natália,
Confesso para você que mesmo sendo lançado há tantos anos, eu não conhecia. Ou talvez seja a edição nova, mas mesmo assim a história me parece diferente. É bem fora da minha zona de conforto, só que necessário, né? Vou deixar anotado para a dica não me escapar.
Beijos
http://estante-da-ale.blogspot.com/