Os contos de fada além das versões da Disney
Jacob e Wilhelm Grimm |
Fui criada ouvindo os Contos de Grimm (aqui em casa tem dois volumes lindos da Ática – volume 1 e volume 2). Eu sempre fui tão encantada pelas histórias, que morria do medo de chegar perto dos livros e estragá-los de alguma forma (parte desse medo, claro, vinha dos resmungos do meu pai dizendo para tomar cuidado porque os livros tinham custado caro, se ainda hoje são caros, imaginem 20 anos atrás – é a idade dos que temos em casa). Enfim, sempre fui apaixonada pelos Grimm e, em contrapartida, não lembro de ser fascinada pelas adaptações da Disney – a bem da verdade, eu sequer lembro de tê-las assistido quando criança.
Cresci ainda amando os poucos contos que conhecia (são mais de cem!) e descobri um universo de críticas a eles: “Ah, mas eles não são escritores infantis, eles só recontaram histórias contadas na época em que crianças eram consideradas pequenos-adultos”; “Ah, os contos originais são tão violentos. Na verdade o lobo comer a Chapeuzinho é uma maneira de dizer que ele a estuprou e na história original o caçador não salva ninguém”; “Ah, mas essas princesas romantizadas e certinhas, esse papo furado de felizes para sempre desde que se faça tudo de acordo com que o homem quer”, etc. Isso tudo sempre me corroeu por dentro e hoje, sendo capaz de ler os contos originais em alemão e tendo ampliado um pouco meus conhecimentos sobre os Grimm, acho válido registrar algumas coisas.
1. Nós conhecemos Jacob e Wilhelm Grimm pelos Contos de Fada (ou “Märchen”, em alemão), mas a verdade é que isso é um tanto limitado, talvez por isso há quem goste de diminui-los dizendo que ‘não são escritores de verdade’. Os Grimm nunca pretenderam ser escritores, mas sim registrar a história da língua alemã. Publicado há mais de duzentos anos, “Kinder- und Hausmärchen” (literalmente, algo como “Contos infantis e domésticos”) reúne histórias contadas oralmente em todos os cantos da Alemanha, quando esta ainda era dividida em reinos e não era um único país. Ou seja, os dois visitaram, há duzentos anos, diferentes cidades e vilarejos em diferentes reinos para registrar a cultura popular local. Por quê? Porque eles foram os primeiros a se preocupar em ver a língua alemã como objeto de estudo, mais que isso, como forma de expressão popular. Até hoje existem inúmeros dialetos no território alemão e, na língua original, é possível perceber essas diferenças. Além dos contos, os Grimm coletaram outras formas da sabedoria popular, como ditados. Sendo assim, enquanto muitos no Brasil os veem como usurpadores da cultura popular, na Alemanha eles são até hoje reconhecidos como linguistas pioneiros responsáveis por valorizar o conhecimento da população (o que, na época, muitos ‘letrados’ acharam ofensivo).
2. Os contos originais não são violentos. Ao menos para mim, enquanto criança, nunca foram. Originalmente, as irmãs da Cinderela (no original, “Aschenputtel”) cortam os tornozelos para conseguirem calçar os sapatos e, mais tarde, como punição por sua maldade, têm os olhos furados pelos pássaros que durante toda a história ajudaram Cinderela (esse negócio de fada-madrinha é invenção da Disney). Quando eu conto isso, as pessoas se apavoram, mas como tudo era fantasia (afinal, mágica, pelo que se sabe, não existe), jamais me assustei. Por isso digo que os contos não são violentos, eles apenas nos mostram que o Bem, apesar dos pesares, gera o Bem e quem faz o Mal, cedo ou tarde, recebe o Mal também (e aqui uso letras maiúsculas como forma de abranger tudo que consideramos bondade e maldade). E, sim, na versão original dos Grimm não só existe o caçador que salva a Chapeuzinho Vermelho (no original, “Rotkäppchen”) como ele também dá um puxão de orelha na menina, dizendo para não voltar a andar na floresta sozinha – pelo que ouvi dizer, é a versão de Hans Christian Andersen que não tem o caçador (e, pelo conto “A menina dos fósforos”, sabemos que ele adorava um drama e não se preocupava muito com lição de moral). Vale lembrar aqui que as histórias contadas tinham o intuito de alertar as crianças sobre os perigos do mundo e a importância de dar atenção ao que os pais dizem, pois eles têm por intenção protegê-las. A história da Chapeuzinho, por exemplo, é muito provavelmente originada da região sudoeste da Alemanha, onde se localiza a Floresta Negra (“Schwarzwald”), uma floresta até hoje gigantesca, imaginem na época. Ou seja, as consequências negativas a personagens como as irmãs da Cinderela apenas têm por objetivo mostrar que tudo que se faz retorna, seja bom ou mau.
3. Os contos mais populares aqui são justamente contos adaptados pela Disney: Rapunzel, Branca de Neve, Cinderela… Todos com príncipes encantados e felizes para sempre, mas isso está longe de resumir a coletânea de contos dos irmãos Grimm. Há muito, mas muito mais além disso e, pra provar, eis uma lista com cinco contos que acho importante que todo mundo conheça (cliquem nos títulos pra lê-los):
A esperta filha do camponês (“Die kluge Bauerntochter”)
A fabulosa história na qual o rei prefere ter uma esposa inteligente, independentemente de sua origem, do que uma esposa de sangue real cheia de pompas. Preciso dizer mais? Quebra completamente com essa teoria de que os contos apresentam um ideal machista de mulher perfeita. Mais que isso, imagino que para as meninas da época essa era uma história que alimentava suas personalidades, dizendo que sangue real não era tudo na vida. E, não, não acredito que alimentasse sonhos de ser rainha mesmo tendo origem pobre, acredito que alimentava a certeza de que um casamento e/ou uma família com amor valiam muito mais que as jóias e luxos da corte.
A senhora Holle (“Frau Holle”)
Nada de reis e rainhas aqui. Nada de príncipe a ser conquistado. Só isso já faz a história quebrar metade das teorias contra os contos de fada, certo? A história aqui é sobre duas irmã: a dedicada e a preguiçosa – e sobre a dedicação da primeira não ser valorizada, pelo menos até ela descer no poço para buscar um novelo de lã que lá caiu. Ao descer no poço ela é transportada a outro mundo, no qual vive a senhora Holle, responsável pelas mudanças climáticas do nosso mundo. A menina então resolve trabalhar para a senhora Holle, a qual é muito atenciosa com ela e lhe dá do bom e do melhor. Quando a menina sente saudades de casa e resolve voltar, a senhora Holle a presenteia com um banho de ouro como pagamento por sua dedicação e amizade. Obviamente que, ao ver a irmã dourada, a irmã preguiçosa quer fazer o mesmo caminho com o intuito de receber o mesmo presente, mas, bem, as coisas acabam não ocorrendo como o planejado. Mais que tudo, essa história mostra que, cedo ou tarde, se dermos o nosso melhor, ele será valorizado.
O pescador e sua mulher (“Von dem Fischer und seiner Frau”)
Essa é uma daquelas histórias eternas que podem ser resumidas em ditos como “Quem tudo quer, tudo perde” ou “O que vem fácil, vai fácil”. Um dia, na sua simples e feliz rotina, um pescador pesca um peixe falante, o qual pediu para ser libertado já que era um príncipe enfeitiçado (finalmente uma história que mostra algo além de ir do feitiço para a quebra dele!). Feliz por encontrar um peixe falante, o pescador simplesmente libertou o animal, mas, ao chegar em casa, sua esposa o convenceu que devia pedir algo em troca, no caso um chalé no lugar do casebre em que viviam. O pescador foi lá, pediu e foi atendido, porém logo sua esposa quer mais e mais. É uma das poucas menções a Deus que conheço nos contos coletados pelos Grimm, os quais geralmente apresentam o Diabo como personificação do mal. Enfim (e aqui vem spoiler), quando a esposa do pescador decide, depois de ser tudo – rainha, imperatriz e até Papa – pedir para ser Deus, o peixe lhes devolve o casebre em que viviam. Uma história excelente contra a ganância, mas principalmente uma história que nos comprova que o que vem sem esforço não tem real valor.
O rei Barba de Tordo (“König Drosselbart”)
Sobre sangue azul não ser sinônimo de ser uma boa pessoa. A princesa da história é uma daquelas pessoas eternamente insatisfeitas que têm como único prazer desprezar os outros sem a mínima cerimônia. Obviamente que, quando seu pai diz que é hora de casar, ela decide criticar e ofender cada um dos pretendentes que surgem, até que seu pai cansa de tanto desrespeito e promete casa-la com o primeiro pedinte que aparecer na porta do castelo. Dito e feito. Sim, essa história termina com ‘felizes para sempre’, mas antes disso a princesa sofre muito até aprender a valorizar o que tem e, especialmente, as pessoas ao seu redor. Me digam, é ou não é uma lição de moral válida ainda nos dias de hoje? Aliás, me arrisco a dizer que hoje é ainda mais valiosa, já que cada dia mais as pessoas crescem ‘com o rei na barriga’, já que os pais acreditam que dizer ‘não’ aos filhos é errado. Talvez essa história valha mais para pais do que para filhos, já que mostra como o mundo real pode ser cruel para quem não está habituado a ele.
Acho esse conto marcante por dar um alerta urgente para as crianças: relações entre pais e filhos não são aceitáveis. A aventura da princesa começa quando ela tem que fugir porque seu pai está decidido a casar com ela, já que havia prometido à sua esposa no leito de morte que só se casaria com uma mulher tão bonita quanto ela. Obviamente que a filha era a única suficientemente parecida com a mãe e, o rei, em um delírio, decide casar com a filha. Como forma de se proteger, ao fugir de casa a princesa se veste com uma capa feita com peles de diferentes animais, se passando assim por orfã e indo trabalhar na cozinha de outro reino. Não sei vocês, mas se hoje eu acho necessário esse alerta de atitudes de ‘homem e mulher’ entre pai e filha, que dirá há duzentos anos. Bem mais válido do que começar a história com a maldição de uma bruxa má, certo?
Pra quem quer saber mais, além do site GrimmStories.com, onde todos os textos estão linkados (e onde vocês podem baixar as histórias em PDF), pra quem tem Net, Sky ou outra operadora de TV a cabo, é possível assistir no site da Globosat (ou no Net Now em ‘Séries’) as adaptações dos contos feitas para a televisão alemã. É só procurar por Os melhores contos de Grimm – mas, é importante registrar, há adaptações também dos contos de Andersen, como “A princesa e a ervilha” e “A menina dos fósforos”, só que com seus enredos devidamente adaptados para soar como um conto de fada de verdade, onde a princesa é algo mais do que alguém que nota que há uma ervilha embaixo dos colchões e onde a vendedora de fósforos tem uma história bonita e não apenas triste. Aliás, todas as histórias foram um pouco adaptadas, como por exemplo a Bela Adormecida (“Dornröschen”), na qual ela tem o poder de escolher ou não casar com o príncipe. Ou seja, adaptações muito melhores que as da Disney, além de serem mais fiéis às histórias registradas por Jacob e Wilhelm Grimm há mais de 200 anos.
Ah, sim, e existe uma edição linda em português com todos os contos e ilustrada com xilogravuras. Essa aqui.
Ana Seerig
Oi Ana,
Fico muito impressionada quando pego outras versões de contos de fadas e até mesmo histórias não tão conhecidas, porque foge muito do que estamos acostumados, as versões 'Disney' coloridas, alegres e bem infantis.
Não conhecia essas!
beeeijos
https://estante-da-ale.blogspot.com.br
Olá, Ana.
Eu comecei a ler livros de contos muito antes de assistir os filmes da Disney. E li todas as coletâneas que tinha na biblioteca, contos franceses, ingleses, alemães e por ai vai. E cada um deles tem uma versão diferente de por vezes a mesma história. Gostei muito da postagem, me abriu os olhos para várias coisas.
Prefácio
Eu acho muito mais legal os contos originais que os adaptados. Não li muitos originais, mas os que li gostei muito. Gostei de saber do site que dá pra ler todos. Vou procurar.
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