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O Mecanismo [Resenha da série]

A série golpista! A série fascista! A internet tem explodido em polvorosa desde o 23 de março último com a estreia da série O Mecanismo, novo trabalho de José Padilha, dessa vez ao lado de Elena Soarez. Como tudo nesses tempos (que não só na moda estética do flashback tem relembrado os 80’s, mas politicamente também, parecendo que vivemos em plena Guerra Fria) o público se polarizou nas opiniões sobre a polêmica série, discussão motivada em parte por exagero dos críticos, em parte (grande parte) por erros crassos cometidos pelos criadores.
É um tanto quanto leviano e sumário classificar a série com epítetos da moda na atual polarização política. Não cola dizer que é “golpista”, que é “fascista” (soa até pueril) ou que é veiculadora de fake news. Convenhamos, totalmente fake o assunto representado ali não é, de modo algum. E pelo amor de Deus, você que se diz de esquerda e sai por aí bradando que vai “boicotar” a Netflix, como se isso fosse uma luta eficaz; você não entendeu foi é nada mesmo do seu lado do espectro político.
Por outro lado, a crítica merece ser feita; diria: tem que ser feita. Padilha não aparenta ser daqueles que por má-fé ou intenções reacionárias deturparia um discurso para passar uma mentira; mas fica a forte impressão de que ele é mais um daqueles cujos, em tempos de polarização clama por ser “de lado nenhum e contra todos”, mas acaba (como é o destino desses ‘isentões’), no fim, reproduzindo o discurso da situação (o discurso ideológico hegemônico – no caso, o da direita).
Estamos falando de um artista longamente admirado pela esquerda e pela direita. Especialmente desde seus grandes sucessos, os blockbusters do cinema brasileiro, Tropa de Elite1 e 2. Estamos falando do Padilha ótimo documentarista, de Ônibus 174, com um olhar crítico e nada banal sobre a realidade; já foi mais aguçado, portanto. O que aconteceu depois da boa vida em Los Angeles, de Robocop e Narcos? Teria a capacidade crítica de Padilha sido afetada pelas facilidades do gozo estético que o dinheiro de Hollywood permitiu? Talvez, a percepção arguta da realidade brasileira que Padilha um dia teve (ou pareceu ter) fora comprometida por ele estar há uns 10 anos apartado e longe dessa realidade.
Dado o cacife orçamentário, estamos diante de uma série com uma fotografia espetacular, esteticamente linda; sem ser apenas plástica, mas sim mantendo um peso realista na tela, ao mesmo tempo em que brinca com as cores e usa bem todo o ambiente. A encenação difere bastante da novela brasileira (porém, os diálogos nem tanto) e assume uma roupagem de cinema norte-americano. A trilha sonora é repleta de boa música e bem entrelaçada com os temas e com algumas cenas. Em suma: é uma série da Netflix de fato com “cara de série da Netflix”.
A sucessão de bolas foras de Padilha (ele, um jogador de tênis recreativo na juventude) está situada na sua visão de como deu vida aos fatos, mas também ao roteiro já falho de Elena Soarez, quase maquiavélico de tão didático: ele tem intenções claras nas entrelinhas, mas o que deveria ser astúcia de entrelinha salta aos olhos para o meio do papel em caps lock arial 14 negritado.
Os diálogos expositivos são de cara o maior vacilo, para quem nota. Para quem também se incomoda, a narração em off é um recurso utilizado à exaustão. Ele não seria tão mal se não fosse pelas frases manjadas, dignas de pensamento de comentarista de Facebook, ou saídas da cabeça daquela sua tia cristã e bem-intencionada. O pior, o sacrilégio de colocar essas frases na voz de um ator tão bom quanto Selton Mello – que aqui representa o Delegado Marco Ruffo (baseado na figura do delegado Gerson Machado) – comprometendo a credibilidade do ator, além de nos fazer cansar de tanto ouvir sua voz monótona.
A impressão é a de que propositalmente se tentou adaptar de forma grosseira a realidade para a ficção, mais próxima do literal do que do lirismo, veiculando um discurso crítico à política pretensamente irônico, mas de uma ironia nada sutil. Os nomes “fictícios”, as personalidades lacônicas das personagens, diálogos frívolos, tudo elaborado com a destreza de uma criança pirracenta de 8 anos de idade. O tom de seriedade dramática não se sustenta ante o efeito gerado, mais cômico, de uma paródia ruim, do que verossímil.
A trama, simplória e cheia de conflitos mal desenvolvidos, está permeada de erros puros (e não, liberdade criativa). Há desde confusões com datas e acontecimentos a defeitos técnicos – como os básicos erros de continuidade aos 14 min. do 6º episódio, quando num diálogo entre João Pedro Rangel (o diretor da ‘PetroBrasil’, em alusão a Paulo Roberto Costa da Petrobrás, encarnado por Leonardo Medeiros, muito bem no papel, inclusive) e sua filha, na alternância de campo e contracampo da cena a moça aparece ora com relógio, ora com manga longa.
Para Padilha, por exemplo, não é problemático colocar a mala de dinheiro destinada a Roseana Sarney no mundo real, destinada, aqui, à Dilma Rousseff (digo, Janete Roscov); ou associar o doleiro Alberto Youssef (aqui Ricardo Ibrahim, bem vilanesco, interpretado por Enrique Diaz com maestria, dando toque de Midas a um roteiro pobre) e o caso Banestado exclusivamente ao início do governo PT em 2003, sendo que o caso e o doleiro já se desenrolavam desde 1996, no governo FHC; ou sugerir que Márcio Thomaz Bastos, falecido advogado criminalista e Ministro da Justiça de 2003 a 2007, fora advogado de Alberto Youssef, o que é mentira; ou atribuir a frase que escarnece gravemente da nação, dita pelo senador Romero Jucá ao ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, em áudio gravado, à voz de Lula (ou, João Higino, do veterano ator Arthur Kohl). A frase de Jucá, por si só é reveladora de todo o esquema, de toda a farsa do impeachment, e é literal, nem precisa ser interpretada. Mas isso é mero detalhe para Padilha, todas essas distorções são para ele licença poética.
Vê-se que, ou o trabalho de pesquisa para compor as personagens e os fatos na série foi pífio, por se acreditar no velho mito do analfabeto político de que “político é tudo igual”, então os detalhes não interessam, ou há uma intenção firme de difamar os políticos alvos prediletos da grande mídia (seguindo, assim, a narrativa padrão, que vende mais e atrai mais público).
Pode-se argumentar: mas há Lúcio Lemes e Samuel Thames, respectivamente, as mímeses de Aécio Neves e Michel Temer; porém, a própria construção e o tempo de tela dedicado a essas personagens é bem mais rasa e bem mais escasso do que o esmero com que se compôs, sob traços de uma sátira raivosa, as personagens de João Higino, uma espécie de Poderoso Chefão bufônico onisciente de toda a corrupção do país, e Janete Roscov, como uma perua fútil e meio destrambelhada com a certeza de estar acima da lei (e essa, inclusive, é a explicação que o roteiro atribui ao fato de Dilma Rousseff nunca ter tentado parar a Lava-jato, ignorando sua reconhecida reputação anticorrupção). Isto, além da caricatura fajuta de Márcio Thomaz Bastos (aqui tornado Mário Garcez Brito), infamante à memória de um dos maiores juristas brasileiros, só porque ele foi Ministro da Justiça de Lula (nível infantil de implicância) – cargo no qual, aliás, foi responsável pela maior reestruturação da história da Polícia Federal.
Assim, o roteiro faz asserções livres e nunca comprovadas na realidade, mas sintonizadas com a interpretação dada pelas colunas de opinião dos principais articulistas políticos de direita. Completa investigações criminais, delações premiadas dúbias e processos judiciais ainda não concluídos e ainda sem provas com a “intuição” e a imaginação dos criadores (alinhada, propositalmente ou ingenuamente, àqueles articulistas). O disclaimer ao início de todo episódio, avisando que essa “é uma obra de ficção”, não basta para esconder as reais intenções aqui de se confundir sim ficção com realidade.
Padilha se engana com a própria opinião, fazendo coro a um senso comum sob a falsa percepção de que tem uma opinião original e subjetiva. Inclusive, o próprio “segredo” do “enigmático” e complexo Mecanismo que o delegado Ruffo demora a série inteira pra “desvendar” é simplesmente: que todos são corruptos, do Seu João encanador ao doleiro Ibrahim. Quanta perspicácia, hein!
A série é baseada num livro, Lava Jato – o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, do jornalista Vladimir Netto. O livro foi classificado por muitos como uma tentativa ufanista de saudar o Ministério Público, a Polícia Federal e de tornar o juiz Sérgio Moro um herói nacional, com larga romantização de fatos. O ufanismo que Padilha economiza na série quanto a Moro e ao MP, ele, entretanto, gasta para retratar a Polícia. Apesar de em texto tentar esboçar tímidas críticas também às instituições republicanas, a câmera de Padilha não resiste em retratar a “Polícia Federativa” da maneira mais badass que o contracheque permite e que o know-how de Robocop inspira, enquadrando de forma cinematográfica e com direito a música estilosa às vezes os agentes policiais em suas fardas imponentes, suas SUV’s nervosas, com suas armas potentes e seus distintivos brilhantes, como se estivéssemos em Miami Vice. O afetado imaginário americanizado de Padilha faz da PF um FBI e da Lava-jato um CSI.
É assim o mundo na cabeça de Padilha, fácil e simples de compreender; um mundo onde “não há esquerda ou direita”, não há nuances, não há tons de cinza entre o preto e o branco; onde uma polícia implacável e estoica vai salvar o mundo da corrupção – são seus heróis de cabeceira, seu sonho molhado. Melhor seria chamar O Mecanismo de O Maniqueísmo, tamanhas as alterações de verdade dos fatos operadas no roteiro e na narrativa. Tudo próprio da visão particular de Padilha (politicamente imatura), das suas versões para os fatos e de um wishful thinking seu, mas ao mesmo tempo alinhado a um senso comum mais banal e apolítico, aproveitado por oportunistas formadores de opinião que vertem essa imparcialidade e neutralidade da maioria das pessoas a seu próprio discurso falacioso. Padilha quis jogar o jogo dos ratos, mas sem ouvir o conselho de Raulzito, achou que não precisaria “transar com Deus e com o Lobisomem” e que podia ser Padilha mesmo; acabou vítima ‘do próprio Mecanismo que criou’ ingenuamente servindo ao discurso só do Lobisomem.
FICHA TÉCNICA

Título: O Meacanismo
Diretor: José Padilha, Elena Soárez
Netflix

Gui Augusto

Na Nossa Estante

View Comments

  • Ola!tudo bem?
    Nossaaaa que resenha mais completa! Gostei muito e adorei saber dos personagens que representam os reais. E eu acho que vou gostar muito!

    Beeijo

    Lecaferouge.blogspot.com.br

  • Olá, Gui.
    Confesso que entendo pouco desse assunto, talvez por isso boei em várias partes da resenha. Mas estou assistindo a série porque vai que tiram ela do ar por causa dessa polêmica toda. Mas estou gostando.

    Prefácio

  • Oi Gui!
    Eita, pesquisou um bocado. Adorei a crítica. Muito completa, parabens!
    Confesso que não tenho saco pra séries nesse nipe, então infelizmente nem me animo a vê, mesmo que as pessoas falem bem ou mal. Minha reação continua sempre a mesma. Eu cheguei a vê o trailer, mas achei muito sem graça e nem quis me arriscar.

    Abraços
    David
    https://territoriogeeknerd.blogspot.com/

  • Oi! Achei bem interessante a proposta da série e li que teve opiniões diversas, cada um vai tirar uma conclusão. Adorei a resenha, esta bem completa. Em breve assistirei. Bjos ❤

    Click Literário

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