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Um Cinema em Concreto [Documentário]

Acompanhando ‘Don’ Omar, um pedreiro já idoso morador de um simplório povoado na Argentina, o documentário nos apresenta com sensibilidade uma apaixonante história sobre o amor pelo cinema. O filme já rodou o mundo em diversos festivais, como o Festival de Miami, ganhando várias indicações de melhor documentário e alguns prêmios por aí, e agora desembarca no país hermano nesta 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Don Omar, durante 04 (quatro) anos construiu um cinema nos fundos de sua casa, sem nem sequer contar a esposa (que quando descobriu já era tarde – para ela) a verdade sobre o mausoléu que erigia, aos poucos, durante mais de 160 domingos. Como nos conta sua filha adotiva: Don Omar, a cada coluna que levantava pensava “é uma a menos”, ao invés de pensar sobre todo o resto da estrutura que ainda faltava…
O concreto do título Un Cine en Concreto, mantido em inglês e em português, refere-se tanto a um sonho concretizado, quanto a realização deste sonho mediante muito concreto, literalmente falando. Assim, com paciência e determinação (não é modo de dizer: aqui essas palavras clichês tomam sua acepção mais pura, personificadas na figura de Don Omar), o cinéfilo sexagenário terminou seu ‘Cine Paradiso’; absolutamente sozinho! – recebendo apenas algumas ajudas, especialmente de dinheiro e material.
Don Omar foi atrás de cada parte de seu cinema, das cadeiras doadas por um antigo teatro desativado da cidade, ao retroprojetor Gaumont (relíquia enferrujada de 1928) – que em pleno ano de 2010 só permitia a Don Omar passar filmes em película (e com direito ao característico e nostálgico barulho de “trambolho” que a máquina fazia). A busca por divulgar seu cinema lhe rendeu até um emprego como locutor na rádio local da cidadezinha.
Com ingressos a 2 pesos, Don Omar nunca aumentou o valor de seu cinema, nem buscou reajustar na inflação ou seguir tendências do mercado, durante todos os pouco mais de 10 anos em que ficou ativado este seu mágico refúgio. Como ele mesmo diz (ao ter frustradas experiências com executivos do ramo na grande cidade, enquanto buscava patrocínio e distribuição): para ele, isso não era um negócio, era paixão.
O documentário tem uma construção narrativa muito envolvente, utilizando-se de planos visualmente líricos entrecortados a cenas do dia-a-dia de Don Omar e cenas ensaiadas. Mas este é um filme sobre a mágica do cinema, e tal qual Orson Welles fez, em seu Verdades e Mentiras, a diretora Luz Ruciello não hesita em desvelar suas próprias táticas de ilusionismo: alguns planos, ainda, operam com a quebra da quarta parede de maneira interessante nos jogando dentro da equipe e dos bastidores. E assim segue seu ritmo, com suavidade nos tirando e nos colocando de volta no lugar de espectador-sonhador.
Além de uma boa edição e montagem, o documentário conta com um trabalho de câmera muito competente, com domínio do espaço e das personagens, captando olhares e detalhes, somando-os à trama e ao caráter ficcional da narrativa documental e realista. Na verdade, nos 3 minutos iniciais do filme eu tinha certeza já que estava diante de um filme de ficção. Só o primeiro voice over é que nos desperta e nos situa no mundo da realidade daquele universo. E é com essa habilidade na linguagem visual que a diretora ganha nosso olhar.
Em subtexto, no plano de fundo dessa história tão pessoal, há também discussões mais gerais colocadas à reflexão. Por exemplo: qual o lugar e a experiência do cinema hoje? Dedicado a atrair principalmente as crianças como público (entregando ingressos gratuitos de porta em porta pela vizinhança, se preciso for – e atraindo os inocentinhos para a arapuca armada no “bar” do cinema: diversas guloseimas a venda), Don Omar argumenta: por mais que tenham a TV ou o computador, “nada se iguala à experiência de ir ao cinema”, naquela sala fechada, escura, com a tela gigante e o som dominando, absoluto, todo o ambiente. Ele mesmo foi capturado pela magia do cinema ainda na mais tenra idade; e dali em diante, nunca mais se desencantou.
Ou também é possível refletir sobre a situação atual da própria humanidade: aquela vida comunitária, de um pequeno povoado, a inocência e a generosidade das pessoas, as relações humanas e interpessoais, o interesse pela cultura e o desejo de sonhar. Ironicamente (e tristemente) parece tudo estar se perdendo no vácuo do tempo na mesma época em que pouco a pouco se extinguem os cinemas de rua e se rareia a experiência mágica para a qual um Omar foi capaz até de erigir um templo com as próprias mãos e coração.
Don Omar mesmo é um tipo em extinção. Felizmente, porém, sua história não é única no mundo, como, por exemplo, outro documentário nos mostra (aliás, exibido anteriormente neste ano no festival ‘É Tudo Verdade’), o brasileiro “Cine São Paulo”, no qual somos apresentados a igualmente apaixonante história do igualmente carismático Chico, e seu esforço por restaurar um cinema dos anos 40 na cidade de Dois Córregos, SP.
É por conhecer histórias de fortes e resistentes (e enganosa aparência frágil) como Don Omar que vale a pena assistir este documentário. Tocarmo-nos talvez por aquelas questões levantadas, pelas potencialidades educacionais e estruturais da arte (em especial a ‘sétima’…), mas também nos emocionar com uma história de magia do cinema e seu poder de fascínio sobre o ser humano.
Trailer:
UM CINEMA EM CONCRETO (A CONCRETE CINEMA), de Luz Ruciello (77′).
ARGENTINA. Falado em espanhol. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 12 anos.
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 6 19/10/17 – 19:30 – Sessão: 73 (Quinta)
CINESESC 21/10/17 – 15:00 – Sessão: 204 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 5 22/10/17 – 22:00 – Sessão: 337 (Domingo)
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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