O diretor haitiano Raoul Peck, engajado em produções políticas, como o excelente e premiado documentário de 2016, Eu Não Sou Seu Negro, tem seu mais novo filme estreando sob a ‘Perspectiva Internacional’ da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em suas 1h58min de duração e com uma finalização apoteótica, o diretor apresenta em O Jovem Karl Marx uma imagem justa e contida de uma figura controversa.
Antes de tudo, é preciso acertar alguns pontos. Karl Marx só é “controverso” na cabeça de quem nunca leu suas obras ou nunca tomou contato com seu pensamento. Além disso, ele, apenas mais um filósofo, historiador e cientista na história do pensamento humano, foi retirado de sua condição humana e alçado a uma condição divina, sagrada por fanáticos que mal compreenderam sua obra, profana por canalhas que o elegem como bode expiatório de um sem número de falácias e absurdos jamais creditáveis ao que ele de fato pensou e escreveu.
Dito isso, é salutar [ao menos] o esforço de Raoul Peck nesta obra em devolver a Marx o seu caráter humano, num tipo de produção nunca antes feita sobre ele: uma cinebiografia ficcional. Aqui não há qualquer gênio, mas um pensador muito competente e dedicado, considerado já a seu tempo gênio por outrem. Fica bastante claro no filme que Marx era mais um amálgama de influências de pensadores passados e contemporâneos, do que propriamente esse gênio.
Passado entre 1843 e 1848, o filme foca especificamente numa fase da vida do barbudão (quando ele ainda não tinha toda aquela juba). Chamar de “Jovem” não necessariamente tem a ver com seu pensamento de juventude, em geral distinguido pelos pesquisadores e acadêmicos estudiosos de sua obra entre “Jovem Marx” e “Marx da maturidade”. Aqui é mais um recurso estético do que cientificamente apurado dizer que vemos o “Jovem Marx” na tela.
De fato, ele era jovem. Aos 26 anos, com algumas obras escritas (como os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, nunca lançados em vida), ou a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica, A Sagrada Família, ou A Ideologia Alemã (estes últimos já em parceria com Engels) – das quais vemos citações durante o longa – e sem contar sua produção acadêmica, com uma formação em Direito e já uma tese de doutorado (defendida em 1841) sobre “diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro”; Marx era um pensador exemplar, estudioso e brilhante (mas nada que o faça transcender da condição de humano).
O filme então analisa um período de amadurecimento intelectual e pessoal de Marx, a partir do momento em que conhece Engels (à época um ilustre estreante no mundo literário político graças ao sucesso de sua obra “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”), entra para a Liga dos Justos, e juntamente com seu novo parceiro trabalham para modificar a revolucionária instituição política clandestina com braços entre França e Inglaterra, e transformá-la na Liga dos Comunistas, lançando para isso um certo manifesto aí…
Este período talvez seja o mais famoso da vida de Karl Marx. E também, de fato, o mais enérgico para se tornar uma narrativa cinematográfica minimamente envolvente, de alguém que tinha a vida intelectual solitária mais pulsante do que a vida social. Os anos de juventude foram os anos do Marx mais politizado e engajado; apenas mais tarde ele “se torna” o recluso cientista. Poucos anos depois, inclusive, por divergências ideológicas, Marx abandona a própria Liga a qual deu existência com seu clássico Manifesto.
Na tela vemos um Marx (August Diehl) amante (“transante”) e amável (um fato: verificável nas cartas que enviava aos amigos e as cartas românticas e poemas que trocava com Jenny Marx, bem como as cartas com suas filhas), um pai de família assolado em problemas financeiros (uma constante por toda a sua vida), vivendo de bicos como colunista freelancer de jornais, um beberrão que não negava um copo cheio de uísque, um bonachão que pregava peças em amigos e provocava diretamente opositores (um traço inclusive verificável em sua escrita, cheia de ironias e tiradas sarcásticas – por vezes até nos arrancando uma risada durante a leitura de seus densos textos) e uma intelectualidade que transpira na pele.
As diversas figuras importantes para seu pensamento não passam despercebidas. Há a presença dos antigos fundadores da Lida dos Justos, como o velho socialista Babeuf, os socialistas utópicos cristãos, o militante e intelectual Wilhelm Weitling (Alexander Scheer), os anarquistas, como Mikhail Bakunin (Ivan Franek), o velho professor Pierre-Joseph Proudhon (Olivier Gourmet) e seu séquito de discípulos fieis (a grande atração intelectual da época). Marx polemizava com todos, até com seu amigo Friedrich Engels (Stefan Konarske) – aliás, de uma relação inicialmente estranhada e que depois tornou-se simbiótica, como o filme bem representa (era de fato Engels quem ajudava o perfeccionista e prolixo amigo a cumprir prazos e organizar sua produção literária, além da já conhecida ajuda financeira). Há referências a Hegel (e aos jovens hegelianos) ou Ludwig Feuerbach, figuras absolutamente influentes na filosofia de seu tempo e essenciais para a maturidade intelectual de Karl Marx.
O filme advém de um claro processo de pesquisa, e Peck não é aqui qualquer diretor inadvertido filmando a vida de uma figura com tanta riqueza de referências e fatos. Talvez até por isso que Peck escolha representar um Marx menor, tímido, humanizado, perdendo-se por entre todas essas figuras; não há uma narrativa ufanista ou maniqueísta apresentando um herói (e até na relação de Engels com as próprias origens há um claro cuidado em não fazer do seu processo de conscientização tanto um insight mágico de epifania, e sim mais uma transição natural). O olhar cinematográfico, estético e biográfico aqui sobre a figura de Marx é absolutamente justo e contido. Este é um filme honesto e cuidadoso.
O trabalho de ambientação e figurino é minimamente o que se espera para um filme de época. Pode se frustrar quem espera uma história romantizada ou muito estetizada. Peck talvez faça uma escolha consciente por não representar essa história com muitos recursos de linguagem visual retórica e envolvente, bem como preferir uma escassa linguagem narrativa dramática. Há realmente um tom de contemplação de um período da vida de uma figura histórica. E só.
As figuras femininas de Jenny Marx (Jenny Westphalen, herdeira da família aristocrata dos Westphalen, que por conta própria escolheu casar-se com o judeu pobre intelectual que a conquistou com seu espírito inabalável de utopia revolucionária) e de Mary Burns (a jovem trabalhadora inglesa demitida da fábrica do próprio pai de Engels, quem este veio a conhecer e se casar, numa espécie de vingança poética contra o que o pai representava) possuem um destaque maior do que o histórico geralmente dado. Mas não por isso injusto.
Numa atuação às vezes um pouco exagerada, Hannah Steele entrega uma Mary Burns combativa e até dominadora, que foi muito importante na vida de Engels, especialmente para sua visão de mundo; e com uma atuação bastante competente, Vicky Krieps, entrega uma Jenny Marx resiliente e fiel, enérgica e companheira no trabalho do marido Marx.
Historicamente as duas mulheres foram de fato essenciais para a vida de seus maridos, talvez não como o filme às vezes insista em representar (tendo que colocá-las em muitas cenas juntamente com os dois, que nem sempre por impossibilidades geográficas mesmo poderiam estar juntos). Mas esse papel fundamental de duas fortes mulheres na vida de dois grandes intelectuais vem documentado em cartas e correspondências entre essas figuras, conservadas no tempo. Mais tarde ainda outros fatos marcariam a biografia de Marx, como a traição à esposa (algo pelo qual confessa em cartas jamais ter se perdoado) ou a influência de mais mulheres fortes em sua vida: suas próprias filhas.
Neste filme temos um olhar analítico e completo, familiar e razoável, sobre uma figura tão engrandecida na história (para o bem e para o mal). É um belo registro cinematográfico e uma justa homenagem a um pensador tão importante para a história da humanidade. A surpresa maior (e muito agradável) vem ao final, pela opção estética (visual e de trilha sonora) contemporânea com a qual o diretor Raoul Peck resolveu finalizar essa história biográfica com um ar de continuidade: não a continuidade numa sequência fílmica, mas sim nos lançando a refletir sobre a continuidade real, aqui e agora, de um pensamento ainda tão presente e vivo.
Trailer:
O JOVEM KARL MARX (THE YOUNG KARL MARX), de Raoul Peck (118′). ALEMANHA, FRANÇA, BÉLGICA. Falado em alemão, francês, inglês. Legendas em português. Indicado para: 12 anos.
PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA 21/10/17 – 21:10 – Sessão: 268 (Sábado)
CINEARTE 1 22/10/17 – 21:50 – Sessão: 282 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 29/10/17 – 17:15 – Sessão: 1060 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 2 30/10/17 – 19:20 – Sessão: 1155 (Segunda)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 31/10/17 – 21:00 – Sessão: 1231 (Terça)
Gui Augusto