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O dia depois [Resenha do Filme]

O novo longa-metragem do sul-coreano Hong Sang-soo chega às telas brasileiras através da seleção “Perspectiva Internacional” dessa 41ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas já tem perspectiva certa de estreia em salas brasileiras para depois do evento. Então é daqueles filmes que se você perder a oportunidade agora, haverá outra depois.
De qualquer modo, pode lhe interessar a ansiedade de assistir logo a nova obra deste já célebre diretor. Hong é conhecido por suas comédias românticas com temáticas existencialistas, bastante calcadas em diálogos potentes e criativos, e cujas dependem quase que 80% do bom trabalho com atores; como eu já disse aqui em outra ocasião, sua obra é quase teatral.
O Dia Depois (Geu-hu) não faz diferente. Aliás, prefiro iniciar pelo ponto negativo: ele faz até “igual” demais! Hong ficou conhecido recentemente na Coreia do Sul (onde ele é uma celebridade) por uma polêmica: traiu a esposa com a sua atriz-fetiche, a belíssima Kim Min-hee. Desde então, Kim tem figurado em todos os seus filmes em papéis protagonistas e com as pompas dos detalhes de uma lente excessivamente reverente (apaixonada). E como a arte imita a vida, tanto quanto a vida imita a arte, os recentes enredos do diretor quase sempre têm sido à imagem e semelhança da sua vida conjugal.
Isso faz com que todo filme de Hong ultimamente pareça estar compartilhando do mesmo universo (talvez futuramente sejam compilados numa trilogia ou tetralogia): eles ocorrem quase nos mesmos tipos de localidades, utilizam os mesmos atores em personagens diferentes ou às vezes parecidas com as do outro filme, e falam de encontros e desencontros entre uma jovem cheia de inocência e vivacidade, sempre numa posição de aprendiz, e um cinquentão charmoso, confuso, silencioso, na posição de uma espécie de mentor.
Apesar de tudo, só podemos na verdade agradecer que este brilhante diretor teve a ideia de despejar desta forma assim, no papel e na câmera, suas angústias, incongruências, falhas humanas e culpa, e escalar esse excelente grupo de mesmos atores e atrizes para dar vida, cor e som a essas sensações. Hong tem se repetido, mas ainda tem mantido a excelência em seus traços distintivos: bons diálogos aliados e uma condução envolvente da narrativa.
A vantagem de ser Hong Sang-soo, e não outro diretor, a entrar numa ‘onda’ dessas é que ele tem vasta experiência em comédias românticas e filmes que contam histórias tragicômicas sobre relacionamentos. Ele tem um arguto olhar para filmar as relações humanas, lembrando às vezes um John Cassavetes.
Aqui, num filme todo em preto e branco, somos introduzidos a história de um editor e crítico literário de meia idade, em Seul, Kim Bongwan (Kwon Hae-hyo) e seu [adivinhe só?] caso extraconjugal com uma jovem secretária Lee Changsook (Kim Sae-byeok) de sua pequena editora. Como os dois não sabem lidar com seus sentimentos, ele introspectivo, negligente e covarde demais, ela muito carente e bastante emotiva, a relação esfria. Sem saber de nada do que estava acontecendo, está a esposa de Bongwan, Song Haejoo (Cho Yunhee). Chegando na hora errada e no lugar errado, há a nova secretária dele, Song Areum (Kim Min-hee).
Por grande parte do filme a dinâmica se dá entre Kim Bongwan e Song Areum, que constroem uma relação sempre nos limites de uma tensão sexual. Neste jogo de gato e rato, mais retórico do que físico, Kim tem um objetivo bem claro: ele, que despe a jovem funcionária das reticências iniciais convidando-a a uma maior intimidade mas prefere ser chamado de ‘chefe’, é um estereótipo recorrente num mercado de trabalho que já institucionalizou o assédio a mulheres no emprego, uma mentalidade hierárquica patriarcal pela qual secretárias jovens e solteiras são contratadas por qualquer critério menos o profissional. Ocorre que ele se dá mal: a personagem de Song inverte as expectativas sendo, diferentemente da anterior, estritamente profissional.
O resultado para Song não será outro: perderá seu emprego e será rapidamente esquecida pelo ex-chefe. Mas sua presença é forte, ela sabe impor-se pela força de vontade e firmeza moral. Na verdade, as personagens de Kim e Song são dois comentários sobre a sociedade contemporânea: valores morais que na essência são tortos e só são polidos quando levantados hipocritamente, e a inversão desses valores provocando-os justamente a funcionarem na prática, desafiando o discurso demagogo e cínico.
Song será tão marcante, que mesmo se esquecendo, o chefe Kim se lembrará dela – através, novamente, da provocação, do desafio, do chamamento. Song, além de uma mulher independente e segura, é uma personagem-filósofa. Ela inverte os discursos supérfluos e superficiais do chefe, ela apazigua a raiva irracional e emotiva da esposa de Kim, ela tenta emancipar a confusa ex-secretária que dá voltas no relacionamento desesperado e sem sentimentos sólidos com o chefe. Ela, uma provocadora nata, é quase uma presença perigosa para o falso moralismo e o discreto cinismo do típico cidadão médio.
Aparentemente nossa provocadora é de fato uma entusiasta da filosofia. Em dado momento ela lê em voz alta na tela de um computador “…intenção fenomenal…”. A palavra “intenção” aparece algumas vezes em vários diálogos também. Quando toma o sentido filosófico de conceito, nós entendemos que O Dia Depois é um filme fenomenológico, de fato. Os encontros entre personagens tomam, todos, contornos de intenções fenomenais investidas umas nas outras, não meras interações carnais e humanas.
A filmagem em preto e branco sugere que a trama se passa nalgum lugar indiscernível do tempo, ela toda é uma memória; o jogo que o filme faz com as elipses temporais (com cortes propositalmente confusos e não-lineares) mostra que não há tempo espacializado aqui: passado, presente e futuro parecem todos ser a mesma coisa. Tudo pode estar se passando na suspensão da realidade dentro da consciência de Kim, bem como pode estar se passando a partir da percepção de Song.
Os dois, apesar de nunca serem corpos que se conectam, ainda assim se completam; são duas visões, duas mentes, duas tomadas de posição frente ao mundo, que de certa forma precisam uma da outra – por mais que todos os absurdos que se sucedam a Song por causa de Kim fariam qualquer amizade impossível entre esses dois num mundo em que as emoções não estivessem em estado de suspensão fenomenológica, ou seja, no mundo real. É um ‘gostar’ mútuo, mas sem sentimentos. Elogios (e.g. às mãos de Song ou ao seu sobrenome, Areum) são prestados sem qualquer afetação no tom vocal.
Um personagem introspectivo, cheio de segredos; constantemente acusado de covarde. Um mundo cerrado em espaços fechados, do qual se tem a capacidade de admirar a beleza da luz do Sol, mas através de seu reflexo nas mesas de um bar entrando pelas frestas de uma cortina. A todo tempo estamos diante de um mundo sem abertura, fechado em si mesmo. Song aos poucos vai quebrando os muros e escancarando as portas do mundo de um incongruente Kim.
As duas personagens tornam-se absolutamente interessantes pela construção do roteiro, e também pelos discursivos diálogos de Song. Todos os diálogos, na verdade, são precisos e bem escritos; corroboram o mistério, o estranhamento e o suspense da trama. Aquele típico estilo de filmar de Hong Sang-soo também está aqui: uma câmera orgânica e muitos zooms. Pela primeira vez, porém, os zooms não são esquisitos ou fora de tom, e combinam com o estilo perdido da filmagem (e.g. que mostra a reação da personagem que está ouvindo ao invés de priorizar o falante ou que subverte regras de plano e contraplano).
Brincando com a câmera, brincando com a montagem, brincando com a edição, tendo confiança em todos os seus diálogos, por mais vazios e deslocados que possam parecer alguns, Hong demonstra ter o total domínio sobre seu filme, na verdade. E o espectador é perfeitamente capaz de compreender isso, e ainda receber este dado de forma positiva.
Hong sabe experimentar, mas voltar ao eixo da história na hora certa. Toda a sua habilidade enfim nos entrega um filme leve, engraçado, agradável e profundo ao mesmo tempo; por mais que tudo seja uma autorreferência de um diretor passando a limpo sua vida e sua subjetividade na tela. Mas quem dera se todos nós (e todos os diretores) pudéssemos falar de nós mesmos falando do universal com a maestria de um Hong Sang-soo.
Trailer:
O DIA DEPOIS (THE DAY AFTER), de Hong Sang-soo (92′). CORÉIA DO SUL. Falado em coreano. Legendas em português. Indicado para: 12 anos.
CINESESC 19/10/17 – 22:40 – Sessão: 27 (Quinta)
PLAYARTE MARABÁ – SALA 1 21/10/17 – 21:15 – Sessão: 263 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 22/10/17 – 15:30 – Sessão: 314 (Domingo)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 25/10/17 – 21:40 – Sessão: 584 (Quarta)
PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA 26/10/17 – 20:00 – Sessão: 764 (Quinta)
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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