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Jericó, o infinito vôo dos dias [Documentário]

Mais um longa trazido pela “Perspectiva Internacional” dessa 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o documentário Jericó, O Infinito Vôo dos Dias, de 2016, é da autoria das mãos habilidosas e aguçado olhar da diretora Catalina Mesa. A coprodução entre França e Colômbia consegue de fato nos colocar acima das nuvens e encerrar na finitude (e concretude) de um documentário toda a emoção de uma narrativa mágica e atemporal
O fato a que somos apresentados aqui parece banal. Algumas histórias são contadas na tela. Um grupo de oito idosas na cidade de Jericó, um pequeno povoado rural antioqueno, no interior da Colômbia, a princípio poderia nos oferecer nada mais do que algumas anedotas, algumas memórias saudosistas sobre o passado e uma visão desbotada sobre o presente.
Mas as senhoras talvez não saibam disso: elas são poetas. Isso é descoberto só pela câmera da diretora Catalina Mesa, que extrai profundidade filosófica e lirismo dessa pequena, anônima e rica realidade. Ela revela a beleza da simplicidade de gente simples. Mais do que isso, revela o amor na dor dessas mulheres fortes e vividas; revela sonhos por entre olhares cansados mas ainda cheios de vigor e curiosidade; revela os costumes, as crenças, e as esperanças que mesmo uma senhora de 102 anos tem diante da vida (e da morte).
É evidente que o tema tratado, e um dos mais levantados por essa edição da Mostra é um retrato da mulher. Como quase toda a história das sociedades ocidentais é a história do modelo patriarcal, centrado na figura masculina, somos apresentados a experiências de mulheres desse tempo e especialmente duma sociedade pequena, conservadora, religiosa. Mais do que isso: temos também o retrato de uma geração de mulheres; e o retrato de uma cultura.
Questionamentos típicos do meio em que elas viveram e que as moldaram são postos na tela. A figura masculina obrigatoriamente era central na vida dessas mulheres na juventude; mas ver a maneira como cada uma lidou e lida com isso é, além da principal linha narrativa de seus relatos, um momento raro só proporcionado por esta pérola aqui. É interessante, engraçado e emocionante ao mesmo tempo o plexo de visões e abordagens distintas delas diante daquele modelo de sociedade.
Há aquelas mais determinadas e independentes, afirmando que nunca precisaram de homem na vida; as que lamentam a falta de um marido numa sociedade que pregava (e prega) isso como condição necessária; ou a que diz “não estou triste por ser solteira ou por não ter um homem”; ou outra, literalmente trocou um homem por Jesus, orgulhosa de dormir com a figura desse seu fiel companheiro ao lado na cama; há quem lamente a ausência precoce de um amado e dedicou sua vida à uma viuvez casta; há também a casada, há 46 anos num relacionamento duradouro de amor e respeito (e de um “véio” que só toma seu cafezinho enquanto a “véia” trabalha na roça), mas que só conseguiu realizar seus sonhos emancipatórios (estudar ou viajar para fora dali) através dos filhos, como conta.
Seja quais forem suas histórias pessoais, um ponto comum entre todas essas mulheres é a sua força, a sua admirável resistência (muitas vezes solitária) diante da crueza e da visceralidade do mundo, o seu vigor de trabalhar mesmo após uma vida incansável; todas elas são sobreviventes, e nenhuma tem raiva da vida. Emocionante é ver sua alegria, sua despreocupação, seus sorrisos ainda irradiando seus rostos; sua vaidade e seu flerte com a feminilidade de outrora, resgatando outros tempos e desejos.
Apesar de não diretamente abordada, e nem receber voz ativa, a juventude também figura aqui (como coadjuvante, pois não é sua hora de protagonizar ainda), captada nas entrelinhas em planos enquadrando com detalhes o frescor das pequeninas mulheres ou a beleza contagiante de garotas adentrando a vida adulta; aquelas que tomarão o futuro da simplória Jericó, e serão um dia as detentoras de tantas narrativas e memórias também.
As interações entre as senhoras; as conversas; as fofocas de vizinhas; os conflitos entre passado e presente nas suas visões; pedaços do passado que nunca se esvaem da lembrança de algumas. Um panorama psicológico é captado pela lente das câmeras de Catalina com suavidade, sensibilidade imagética e firmeza narrativa.
É único poder conhecer essas personagens. A sua lucidez, seus pensamentos, monólogos primorosos como a centenária refletindo confessa diante da câmera, com toda a serenidade: “penso mais na próxima vida do que nessa (…) tenho me preparado para a última hora”. Conhecer também suas histórias de vida e anedotas, relatos da cultura de um povo específico – a subcultura paisa, do povo antioqueno (tal qual a diretora Catalina), das coloridas cidadezinhas montanhescas do noroeste da Colômbia, como é Jericó. Cultura já há muito fundida com a liturgia católica, que exerce influência determinante no imaginário e na estrutura psíquica dessas mulheres.
O documentário se conduz de uma maneira bem apegada a uma forma rapidamente identificável pelo espectador, tornando-se uma experiência confortável de viagem (como se recostássemos no assento de um avião e dormíssemos tranquilos com a confiança de um sonho bom). Você só precisa prestar atenção às histórias, e o que é feito de forma muito envolvente pela montagem, pela música e pela fotografia.
No entanto, certos cacoetes poderiam ser reduzidos. O fato de a todo tempo inserir uma música nas transições, com imagens repetitivas e às vezes sem muito sentido, embora de início empolgue, depois de um tempo soa manjado ou cansativo e remete àquelas transições melodramáticas de novela. Ao menos, a seleção de boleros e músicas românticas antigas, soando quase escapistas na realidade de hoje, é muito boa (e meu Shazam trabalhou!).
Apesar desse ponto, a experiência do filme não fica de forma alguma atrapalhada e nem comprometida. O documentário nos leva longe, faz sonhar, tira-nos das simples histórias narradas, provoca a reflexão, e nos suscita boas sensações (das memórias delas, que nem temos, mas conseguimos tocar, reconstruir; e inevitavelmente ligar às nossas). Se você procura uma sessão de cinema agradável para sair com um sorriso leve no rosto, este é seu filme.
JERICÓ, O INFINITO VÔO DOS DIAS (JERICÓ, THE INFINITE FLIGHTS OF DAYS), de Catalina Mesa (78′). FRANÇA, COLÔMBIA. Falado em espanhol. Legendas eminglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 14 anos.
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 3 19/10/17 – 19:15 – Sessão: 57 (Quinta)
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 3 20/10/17 – 17:50 – Sessão: 93 (Sexta)
PLAYARTE MARABÁ – SALA 1 22/10/17 – 12:30 – Sessão: 350 (Domingo)
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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