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Happy End [Resenha do Filme]

Happy End conta a história de uma família que se reúne pela ocasião de um fato ocorrido com um dos familiares, dessa forma, velhos hábitos são relembrados, contatos há muito congelados no remoto do tempo são retomados, novos integrantes querem entrar, velhos integrantes querem sair, relações estremecidas são postas na mesa do jantar. Enquanto isso, no plano de fundo de suas vidas privadas, um quadro da Europa está se passando.
Incluído no panorama da “Perspectiva Internacional” dessa 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o novo filme do veterano diretor Michael Haneke, de sucessos como Fita Branca, Amor (este, embora envolvido em polêmicas de plágio) ou Violência Gratuita faz um ácido diagnóstico sobre a alta classe de feições burguesas de um país europeu de hoje.
Já iniciado com uma fria interação entre câmera, público e personagem, o filme diz a que veio. Mostrando alguém escondido filmando através do que seria um aplicativo de celular (uma câmera com mensageiro eletrônico) uma outra pessoa no banheiro, descrevendo passo a passo via mensagens cada ação dessa pessoa nesse momento de tanta intimidade, o filme propõe discutir a distância e frieza nas relações humanas e uma certa onipresença dos meios tecnológicos digitais e hiper conectados neste contexto.
O nosso narrador ou narradora, de quem por enquanto não ouvimos a voz, mas nos narra seus pensamentos via essas mesmas mensagens, que lemos na tela, aparenta ser, inclusive, um ser humano bem frio, meio psicopata e meio autodepreciativo: escalando da contemplação sarcástica do momento de fraqueza dos outros para um desequilíbrio emocional de violência contida e até reação apática diante da morte.
Suspeitamos no mínimo que há uma mente madura e cruel por trás dessa câmera de celular. Mas o filme é cínico; a todo tempo a construção da narrativa vai se conduzindo com esse tipo de ancoragem para gerar tensão no espectador, então, mais ou menos, nunca sabemos o que esperar das personagens. Até porque, essas personagens meio sinistras, estão no limiar da vida. Ou, como analisaria Hegel, conquistaram a morte.
N’ “A Fenomenologia do Espírito”, o filósofo idealista alemão argumenta, em dado momento da sua análise dialética da consciência em processo de se tornar sujeito-objeto que uma consciência mais forte conquista e escraviza a outra quando ela desafia a própria morte. Quem conquista a morte é capaz de conquistar qualquer outro no mundo. É, em outras palavras, invencível.
Aqui estamos diante de uma variedade de ‘invencíveis’. O filme traz verdadeira coleção de tipos burgueses, duma elite forjada no próprio sangue azul da aristocracia do Velho Mundo, que hoje herda sua consciência burguesa e as armas que o dinheiro lhe dá diretamente do poder e influência que outrora eram ligados ao nome e aos títulos de nobreza.
Todos os clássicos estão aqui: pais separados, pais ausentes, falta de carinho, o marido traíra e egocêntrico, a mãe depressiva, a criança cruel e insensível, a mulher alienada (que se orgulha do bebê falar ‘papai’ ao invés de ‘mamãe’); psicopatas e pragmáticos que amam mais a carreira do que a família, filhos frustrados e mimados, narcísicos e violentos, falsos empreendedores (herdeiros de empresa familiar); tipos vaidosos; o patriarca, o rico egocêntrico e arrogante que crê poder comprar tudo e controlar todas as vontades com o dinheiro; o rico solitário, galanteador decadente; e os empregados: de etnia, nome e língua árabes ou africanas (os imigrantes aparecem em outras inserções também, interagindo de forma errática e irônica com os paradoxais ambientes perfeccionistas e assépticos da burguesia europeia).
A vida de quem já foi até o topo e não se abala nem mais com a possibilidade da morte (até anseia conhecê-la cara a cara) só pode ser uma vida vazia. O tédio do dia-a-dia dessas personagens se reflete no tédio do ritmo do filme. Porém, pela boa construção da tensão, conseguimos sentir também as variações desse ritmo. Ele vai do enfadonho gradualmente ao pesado e absurdo (portanto, curioso); enquanto experimentamos o crescendo de uma sutil carga de desespero contido, no âmago das personagens.
As tentativas de implementar um debate sobre as frivolidades do mundo conectado e da imersão das redes sociais nesse contexto assoberbado e vazio de sentido da vida burguesa soam fracas. Através de intersecções da câmera com vídeos e recursos típicos de várias redes sociais do nosso cotidiano, ou momentos didáticos que o enredo mostra pra nós que uma situação incômoda está acontecendo nalgum representativo desse mundo, como uma conversa proibida num mensageiro eletrônico ou um e-mail lascivo, são mal encaixadas, não soam como transições naturais na narrativa, e sim falsas demais, ensaiadas demais, muito construídas ou manipuladas, revelam só um olhar anacrônico e desentendido do diretor Michael Haneke.
Mas quando Haneke é o bom e velho Haneke dos conflitos e suspenses, aí sentimos que há um grande olhar de um bom diretor por trás da câmera. As tentativas experimentais de uma crítica atualizada sobre a contemporaneidade não chegam a atrapalhar a narrativa do filme, mas são notadas. O que tira um pouco do vigor é o roteiro meio confuso mesmo; num certo ponto ele passa a arrastar a trama, querendo desenvolver aquilo para o que não tem tempo.
Ao menos, ela se encerra com dignidade. Se parecia um pouco perdida logo antes da sequência final, é este momento que retoma o fôlego, de uma obra que descendia rumo ao estado terminal, conferindo um bom desfecho, irônico como os melhores momentos desse filme. Se o final condiz com o título, quem decide é o espectador; personagens com mais em comum do que aparentam dividem a ação, que acaba envolvendo a família toda. O fim é o próprio desfecho de um modelo familiar; se é “feliz” ou não, não sabemos.
HAPPY END (HAPPY END), de Michael Haneke (107′). FRANÇA. Falado em francês, inglês. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 14 anos.
PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA 27/10/17 – 19:50 – Sessão: 872 (Sexta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA SALA 1 28/10/17 – 21:50 – Sessão: 924 (Sábado)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1 29/10/17 – 19:30 – Sessão: 1061 (Domingo)
CINEARTE 1 30/10/17 – 16:10 – Sessão: 1116 (Segunda)
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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