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Cuatreros [Documentário]

Usando técnicas visuais inventivas para um documentário, baseadas no impressionismo francês, a diretora Albertina Carri nos conta a história do fora-da-lei camponês argentino, Isidro Velázquez, através da reconstituição de seus passos e suas ideias. Isso se dá através de imagens de arquivo, reportagens de época, roteiros de filmes nunca realizados e anotações de Roberto Carri, autor do livro Formas Prerrevolucionarias de La Violencia, sobre Isidro.
Velázquez é uma figura quase mítica no norte da Argentina. Porém, talvez somente lá seja uma figura relevante e bem conhecida. Considerado o “último dos gauchos” (gaucho, diferente do nosso gaúcho, mas que também é símbolo de uma cultura tradicional local), ele foi morto pela polícia em 1967. ‘Último’, porque virou lenda numa época (anos 60) em que ninguém esperava mais que se contassem histórias de bandoleros rurais que se tornam heróis populares (espécies de Robin Hood ou Zorro).
Roberto Carri era sociólogo, ele e sua esposa, Ana María Caruso de Carri, pais da diretora, por decorrência de seu envolvimento político com o peronismo foram sequestrados e desapareceram para sempre em fevereiro de 1977, na última das ditaduras militares argentinas (1976/83). Roberto estudava a vida de Isidro, e em seu livro argumenta que o bandoleiro era uma espécie de “revolucionário primitivo” – um tipo bufônico e satírico, que cometia crimes mais pelo prazer de se posicionar contra o Estado e as figuras policialescas de autoridade, do que pelos produtos dos crimes.
Duas personagens perseguidas pelo poder político ditatorial e por um Estado policial em dois tempos distintos em duas ditaduras (Isidro na de 1966/73) entrelaçam-se na história, narrada pela própria Albertina. A intenção da diretora é fazer uma reconstituição histórica, mas também um acerto de contas com o passado, buscando a memória dos pais (que quando foram mortos, ela tinha ainda 4 anos de idade), uma vida plena interrompida, uma família tirada de si.
Alguém disse uma vez: um diretor sempre faz o mesmo filme. Um diretor de cinema que é também autor, roteirista, criador independente, inevitavelmente acaba gerando uma obra repetida sobre si mesmo; sobre sua experiência diante do mundo. Albertina, que já dirigira uma ficção sobre os pais (Los Rubios, de 2003), volta ao tema neste documentário, mas usando a história de Velázquez, admirado pelo pai, para justamente exumar o pai também.
O filme poderia, a partir dessas histórias particulares, ter levantado questões mais gerais e discutido uma época, como outras produções já fizeram, mas preferiu adotar o tom pessoal de relato e desabafo, ordenado em quadros apresentados simultaneamente na tela como se estivessem rodando cenas de películas que lembram filmagens caseiras e familiares (daquelas guardadas num baú esquecido nalgum canto de casa, e vez ou outra revisitadas).
Dentre os variados tipos de materiais de arquivo estão alguns bem interessantes: roteiros de filmes abortados. Velázquez desenhava histórias de perseguição, satirizando a polícia, muitas vezes; aparentemente os Carri (pai e filha) escreveram filmes sobre Velázquez e, consequentemente, também sobre histórias de perseguição. As intenções de Carri pai com o Cinema eram revolucionárias: para ele esses filmes seriam formas de passar os ideais de insurreição ao povo, especialmente camponeses (como um Velázquez).
Retalhos desses roteiros são narrados por Albertina e inclusive com as notas de rodapé do pai e dela própria, explicitando outras intenções e formas de lançar esses filmes que nunca existiram (seja como leitura performática ou como livro); mas, ironicamente acabaram existindo agora, neste documentário. De fato, ao menos um longa sobre Velázquez chegou a ser rodado por Roberto, mas este filme desapareceu junto com ele na época da ditadura.
De Cuatreros você sai conhecendo bem Velázquez e Roberto Carri, sabendo detalhes de suas lutas e suas vidas. O documentário é uma profunda investigação psicológica de personagem; mas, ao largo de tudo, quem foi Velázquez? Nenhuma figura histórica muito relevante, ninguém importante (fora do folclore local). É verdade que ele poderia passar a sê-lo com este filme, mas ele não é construído assim aqui, e nem é uma figura tão diferente ou interessante a ponto de despertar curiosidade em audiências mais largas.
O documentário também, apesar de tudo, não é assim tão envolvente. Os tempos dessas personagens, sim, são importantes, relevantes; mas sobre isso uma infinidade de obras e outras figuras mais alusivas existem para se colocar um debate dessa magnitude: sobre repressão e ditadura. Aqui, Albertina acaba criando mais um exercício pessoal de resgate de memória do que fomentando reflexões e abrindo um debate sobre os temas levantados.
É como Carri mesmo escreveu do significado de Velázquez: “uma receita romântica de resistência”; e o filme serve apenas para isso, para nos deleitarmos com o romantismo de um bandido-herói perdido no tempo sem muita relevância histórica. Por isso é um filme que parece funcionar mais para Albertina do que para o público.
Não quero dizer com isso que seja um filme descartável, vale a pena também conhecer essa história (especialmente pela sequência de reflexões, provavelmente da própria Albertina, narradas nos mais ou menos 20 minutos finais do filme, acerca do mundo atual, da Argentina de hoje e da América Latina). Mas se alguém me perguntasse eu recomendaria: só vá assistir se realmente não tiver nada melhor sendo exibido na mesma faixa horária.
O filme é um relato inacabado de uma vida interrompida (três, aliás: Isidro, Roberto e Albertina); de um sonho e uma luta cancelada, só evidente por entre restos, retalhos de um tempo, só remanescente parcialmente. Um filme que não era para ser assim (segundo as ideias originais e os roteiros de Carri pai), mas acabou sendo. Ideias, e uma obra, que eram pra ser ficção, leitura performática, ou livro, mas acabaram não sendo. Cuatreros é este filme aqui. Graças ao destino, só pôde ter se tornado esse documentário, e assim entrar para a história (tão timidamente e pequeno quanto o próprio Velázquez). Um feliz desencontro encontrado, mas talvez que interesse a poucos.
Sessões:
CUATREROS (RUSTLERS), de Albertina Carri (85′). ARGENTINA. Falado em espanhol. Legendas em inglês. Legendas eletrônicas em português. Indicado para: 14 anos.
CIRCUITO SPCINE OLIDO 20/10/17 – 17:00 – Sessão: 119 (Sexta)
PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA 25/10/17 – 15:45 – Sessão: 637 (Quarta)
CINEARTE 2 26/10/17 – 15:50 – Sessão: 659 (Quinta)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA ANEXO 4 28/10/17 – 19:45 – Sessão: 928 (Sábado)
Mais informações: http://41.mostra.org/br/home/

Gui Augusto
Na Nossa Estante

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