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24 Frames [Resenha do Filme]

Há também na programação da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o novo filme do célebre diretor iraniano Abbas Kiarostami, falecido no ano passado (2016) e deixando um impreenchível vácuo no panteão do cinema mundial e sem dúvida tendo canonizada a sua imagem na história da sétima arte. Talvez, ecoando a melancolia deste vácuo, 24 Frames surja em 2017 para alentar a memória de sua obra com seus tempos silenciosos e espaços vazios que inspiram a contemplação e a reflexão diante da vida.
A beleza da vida aqui, entretanto, é provocada não por paisagens naturais ou uma filmagem live action. É, sim, através de efeitos especiais, numa reconstrução digital da própria simplicidade da natureza; reconstruindo na tela um outro tempo, diferente do humano. Talvez do ponto de vista etéreo, de quem nem está mais aqui, mas observa o mundo como a um álbum de fotos.
Declaradamente um filme que era para ter acontecido sob a linguagem padrão cinematográfica, 24 Frames abandonou sua proposta original quando o diretor decidiu fazer deste filme uma fotomontagem. Há aqui uma proposta inovadora interessante de subversão da própria linguagem clássica.
Literalmente, o filme todo, em suas quase 2 horas acontece em 24 frames; um frame, que em média na montagem cinematográfica demora apenas alguns segundos e compõe os planos e cenas – que aí sim, ao final entregarão a clássica conjunção de imagem, som e movimento com que estamos acostumados desde que Joseph-Antoine Plateau, Charles Émile Reynaud e o inventor Thomas A. Edison revolucionaram os usos da fotografia e abriram caminho definitivo para os irmãos Lumière – aqui no filme de Abbas é ressignificado, num duplo salto histórico através do qual viaja a um tempo de pré-cinema enquanto também visita o pós-cinema, do futuro ainda inexplorado.
Ele apresenta na tela o que há de mais antigo em termos de fotografia: a própria foto. Mas movimenta esse totem sem movimento de uma maneira mais inovadora como se fosse uma evolução daquilo que Chris Marker ainda nos anos 60 fez inovando também a linguagem cinematográfica ao criar uma história toda em fotomontagem, concatenada por transições brandas entre imagens estáticas e uma narração, em seu clássico curta-metragem, La Jetée.
Na era da internet estamos habituados aos gifs, que permitem o movimento, ainda que sem som, a uma imagem estática. Mas os gifs [ainda] não contam histórias. Maldosamente (mas não sem razão) apelidado por alguns como “a sucessão de descansos de tela de computador do Abbas”, ‘24 Frames’ conta uma história criando movimento em 24 imagens paradas na tela, que acabam se tornando 24 capítulos de uma mesma história. Ao mesmo tempo é uma técnica bastante original e subversiva ao alongar o tempo de um frame, em geral de segundos, para minutos, longos e contemplativos na tela, provando que consegue também mostrar uma história nesses frames sem precisar movimentá-los e muda-los entre si numa sequência lógica e dramática.
Atravessam as 24 etapas dessa construção narrativa alguns elementos comuns, como os tempos frios e chuvosos, as cores cinzas, a abundancia de brancos, pretos e cinzas, uma imagem melancólica ao mesmo tempo que pacífica, bela e monótona, remetendo a um universo onde é sempre inverno, ou outono. Ao fundo ouvimos sempre os mesmos animais convivendo na harmonia do habitat e da paisagem ou os sons da intervenção humana profanando o silêncio sagrado da natureza; algumas personagens como corvos (presentes em quase todo frame) e vacas surgem mais de uma vez ao longo dos frames nos fazendo perguntar se não seriam os próprios protagonistas dessa história que aparenta não ter narrativa e nem lógica dramática.
No filme a natureza morta é injetada com vida, como se ressuscitasse e fosse permitido àquela foto, àquela peça de museu estática do tempo, magicamente vivenciar um novo tempo dentro do tempo calcificado. O processo de dar vida a imagens sem fazê-las se mover por completo ou sem ter que alternar frames é feito por meio da inserção digital de vídeos nessas imagens estáticas; como se Abbas trabalhasse com uma colagem de retalhos de vídeos sobre imagens ao invés de imagem sobre imagem (o que na colagem artística é mais comum).
O experimento de videoarte de Abbas soa mais como isso mesmo: um experimento. Um momento, um olhar. Há uma certa poesia para quem está acostumado com seu cinema ou sua biografia e pode ver algo a mais aqui, ainda não desvelado aos olhares incautos. Provavelmente não é um filme para todos os públicos. É mais uma peça de memória, uma catártica lembrança, do que uma experiência cinematográfica comum. Mas não deixa de ser uma abordagem cinematográfica experimental.
Em certo momento pode cansar e nos fazer perguntar “por que estou aqui vendo cavalos digitalizados numa paisagem de neve emulando o exato comportamento de cavalos selvagens reais, enquanto seria melhor eu estar vendo os cavalos reais num documentário do National Geographic?”. Há um grande esforço do espectador aqui para fazer este filme acontecer; o que não é demérito algum, ainda mais quando a obra dialoga e diz tanto a você.
Daqui podem sair construções pessoais incríveis, como pode sair nada também. Ou podemos compreender algum discurso num possível subtexto, como a crítica a intervenção humana na natureza e ainda assim não sermos emocionalmente vinculados pelo filme. O homem, inclusive, exceto por um dos frames, toda vez que surge na tela (visual ou sonoramente) é desmatando o ambiente ou trazendo a morte a outros seres (e sob uma trilha sonora tensa) através da sua devastadora tecnologia (armas de fogo ou serras elétricas).
O realizador recria a partir da sua própria imaginação pequenas histórias, pequenas narrativas conferindo vidas para aquelas imagens que poderiam não dizer nada. É como se ele mostrasse um retrato da própria imaginação em movimento, mas parada, para contemplarmos. Ao mesmo tempo que nos leva a uma viagem e a lugares oníricos da própria consciência, também somos induzidos a adentrar esses locais com a nossa imaginação. O filme acaba sendo mais lúdico do que uma simples experiência passiva; e por isso necessita de certo nível de engajamento do espectador.
Apesar de os efeitos digitais não funcionarem às vezes e soarem até falhos, a proposta é muito válida. Há uma habilidade em contar uma história, mesmo que num filme sem qualquer diálogo ou personagem clara, sem uma narrativa ao estilo clássico audiovisual, e ainda assim se utilizando dos signos mais básicos dessa arte: imagem e som. Só com o poder desses dois fatores a cada frame Abbas constrói um mundo e uma história. E todos os 24 unidos podem contar uma história do nosso próprio mundo.
24 FRAMES (24 FRAMES), de Abbas Kiarostami (120′). IRÃ, FRANÇA. Falado em sem diálogos. Indicado para: Livre.
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 2 28/10/17 – 21:20 – Sessão: 939 (Sábado)
CINE CAIXA BELAS ARTES SALA 3 30/10/17 – 15:45 – Sessão: 1111 (Segunda)
CINESESC 31/10/17 – 20:10 – Sessão: 1215 (Terça)
INSTITUTO MOREIRA SALLES – PAULISTA 01/11/17 – 21:50 – Sessão: 1385 (Quarta)
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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