Categories: Uncategorized

Silêncio [Resenha do Filme]

Conferimos a Cabine de Imprensa de Silêncio
O novo filme de Martin Scorcese nos traz um tema que já foi tabu, mas atualmente vê-se pouco ser tratado nas narrativas sobre religião: a fé católica. A abordagem formulada por Scorcese é original e múltipla, sem cair em lugares-comuns do gênero (embora se valha de clichês para compor a história). Silêncio é uma adaptação de um romance histórico homônimo, do escritor japonês Shusaku Endo (com lançamento no Brasil através do selo Tusquets Editores). Endo, um dos escritores japoneses mais celebrados do século XX, era também um católico praticante, e utilizou em suas obras o conhecimento que adquiriu em seus estudos e viagens pelo mundo (buscando aprender sobre a história e a realidade de sua religião) – este seu livro, publicado em 1966, causou até polêmica no Japão pela maneira considerada “dura” de tratar a fé católica.
Scorcese, também católico, passeia pela segunda vez em sua filmografia por este gênero de história. Conhecido pelos seus filmes de gângster clássicos, como Casino ou Os Bons Companheiros, e por sua relação com Robert De Niro como ator fetiche (Cabo do Medo, Taxi Driver, Touro Indomável e tantos outros clássicos), em 1988 filmou A Última Tentação de Cristo, com Willem Dafoe no papel principal. À época o filme enfrentou algumas polêmicas, por mostrar um Cristo que se arrependia de seus pecados e questionava a própria fé. A visão de Scorcese sobre a religião católica não é dogmática, e isto que é o interessante nela.
Em Silêncio, talvez não seja “dura” a maneira do diretor tratar a religião católica (o que pode ser uma peculiaridade da adaptação), mas se pode dizer tranquilamente que o tratamento dispensado à fé e à religião como comumente conhecemos é trazido aqui para um solo mais empírico, realista e que respeita a complexidade do social e da mente humana. Não se trata de uma defesa calorosa da religião católica, nem tampouco de um desrespeito à fé religiosa.
A história se passa no século XVII, entre Portugal, Itália, Macau e Japão. Os padres jesuítas Francisco Garupe (Adam Driver) e Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) convencem seu superior Padre Valignano (Ciarán Hinds) a permitir uma viagem ao Japão para encontrar seu mentor, o Padre Cristovão Ferreira (Liam Neeson), sumido há décadas naquele país e envolto de mistérios e boatos.
Tal viagem conferirá aos dois a alcunha de “os últimos jesuítas no Japão”, pois ao aportarem lá, em 1640, eles encontram tão somente resquícios de uma fé católica deturpada, e enfraquecida e esfacelada por uma violenta política higienista empreendida pelo governo japonês, encabeçado pelo governador e ‘inquisidor’ Inoue (Issei Ogata), e com resultados “satisfatórios” alcançados já há algumas décadas antes – justamente quando o padre Cristovão foi dado como morto.
A motivação do governador Inoue (e por conseguinte do governo japonês) para extirpar de vez de seu país a religião católica foi justamente preservar as tradições, religião e modos do Japão, manter-se firme diante do potencial destruidor de dominação cultural da fé católica – e, de, fato, como a História comprova, os jesuítas e sua Companhia de Jesus foram a mais profícua estratégia da Igreja Católica para infiltrar seus dogmas e preceitos em culturas nativas pelo mundo inteiro, e solidificar de vez o alcance abrangente da sua influência e poder político.
Mesmo que não considerássemos as formas também violentas que o catolicismo já encontrou ou já empreendeu para se manter forte e glorioso (não retratadas no filme e nem são o foco aqui), pode-se considerar já uma violência o próprio mecanismo de descaracterizar e desvirtuar culturas e religiões locais através de uma dominação sutil e duradoura, tão evidente nas missas, catecismos, batismos, ensino da bíblia e da língua latina etc. (e muito bem representada num ótimo e premiado filme colombiano de 2015, O Abraço da Serpente), ritos perpetrados pelos jesuítas como parte daquela estratégia de dominação.
No entanto, a violência que tem atenção central no filme é a dos japoneses, contra essa ameaça da influência externa em sua cultura. Porém, não só violência. O enredo traz diálogos bem construídos; um plot twist no destino de algumas personagens evidencia por trás do conflito sangrento entre duas culturas disputando espaço, poder e influência, um verdadeiro conflito intelectual e filosófico, que embasa todo o resto e é a real motivação dos agentes envolvidos.
Por outro lado, o caráter perverso dominador da religião católica não é ressaltado, em seu lugar somos apresentados aos seus efeitos psicológicos e realistas em seus personagens. O que vemos aqui são fantoches em meio a jogos de poder: padres jesuítas que acreditam, têm fé, esperanças, anseios, e são instrumentos de disseminação de algo maior do que possam entender ou cogitem criticar; são humanos falhos, que postos à prova têm reações e emoções humanas, questionam suas convicções, não sabem o quê ou como executar suas tarefas (e.g. como o atrapalhado primeiro contato com o remoto vilarejo japonês).
Pra quem queria ver o novo queridinho vilão de Star Wars brilhar (o neto do Homem-da-capa-preta) vai ter que esperar o filme VIII mesmo. Adam Driver tem pouco espaço e tempo de tela. Por outro lado, Andrew Garfield tem um surpreendente espaço central e um papel protagonista na história – o “garoto” parece ter caído nas graças de Scorcese, mesmo sendo tão novato na cena e com a qualidade e talento ainda questionáveis. Sem dúvida Garfield encara o maior papel de sua vida profissional, mas atravessa bem seu desafio. Liam Neeson, astro hollywoodiano famoso por atuações e filmes bastante genéricos e inexpressivos, emerge aqui também com peso e profundidade (mesmo num breve tempo de tela). Destaque merecido também vai para o ótimo elenco japonês selecionado, repleto de excelentes atores japoneses oriundos daquela indústria cinematográfica.
Pode-se dizer que Scorcese, como um grande diretor que é, tem influência nisto. O Midas dos elencos opera milagres ao tocar atores novos ou comuns e extrai deles um potencial de atuação que aparenta ser maior do que o próprio ator sabia ser capaz (posto à prova com roteiros e personagens bem estruturados, típicos de Scorcese). Ele já fez isso antes com Robert De Niro (quase durante a carreira toda do homem) e também mais recentemente com Leonardo Di Caprio (em O Aviador, A Ilha do Medo, Os Infiltrados e o ápice, O Lobo de Wall Street).
Sem dúvida estamos diante de um belo e grande (em qualidade mesmo) longa metragem. Porém, não diante de um dos melhores de Martin Scorcese – e o tempo de espera foi longo; diz-se que Martin há mais de 20 anos desejava adaptar e filmar essa história. O filme tem falhas e um considerável uso de clichês; por vezes situações e conflitos que impulsionam a história são fins em si mesmos e não têm explicação de fato nela, mas são validadas pelo mero uso do recurso (como a narração em off do padre Rodrigues, lendo uma carta gigante em que escreve suas memórias mas nunca sabemos onde ou como ele escreve). Fora que não se desvencilha do irritante uso da língua inglesa para representar outras culturas e línguas (que sempre soa a mim como preguiça narrativa e imposição cultural).
Temos mesmo o péssimo hábito de tender a esperar de um grande diretor não menos do que uma obra-prima a cada novo trabalho. Entretanto, como dito, está longe de ser um mau filme. Questões profundas são tratadas por um enredo inteligente; conflitos complexos suscitam interessantes reflexões; tudo numa trama original que elege para o centro de sua história a apostasia (renúncia à fé cristã, espécie de deserção herética) e termina como uma declaração de amor à própria fé católica; e, em última instância, a toda fé que se manifeste forte e sinceramente o bastante para mobilizar uma pessoa ou um povo a resistir e perdurar, mesmo que sob o sigilo e a segurança do… silêncio.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: Silêncio
Título Original: Silence
Direção: Martin Scorsese
Data do Lançamento 09 de março de 2017
Gui Augusto
Na Nossa Estante

View Comments

  • Olá, Gui.
    Pensei que não ia terminar mais de ler hehe. Acho que esse film,e não é para mim. Não sou muito fã de livros ou filmes que tenham alguma coisa a ver com religião. E também do jeito que ando dormindo sentada ultimamente não ia conseguir nem ver metade dele e já ia pegar no sono.

    Prefácio

    • Olá, Sil. Hehehe. É, talvez este filme te embalasse num sono maravilhoso então, porque o "silêncio" do nome não é só marketing: de fato o filme o utiliza como um recurso narrativo e de ambientação constante! Mas se estiver com o sono em dia, dê uma chance, talvez vc possa se surpreender e ficar presa do início ao fim, pois apesar de longo e silencioso, é um filme instigante e que utiliza muito bem esses recursos considerados sonolentos!

      Abraços!

    • Olá, Larissa! Vá curtir essa experiência sim, depois conte para nós o que achou do filme ;)

      Abraços!

  • Olá! A temática do filme é forte e polêmica. Fujo de filmes voltados para religião,na maioria das vezes gera comentários e situações nada amigáveis. Mas fiquei tentada pelo enredo, já que nunca vi algo do estilo. Bjos <3

    Click Literário

    • Olá! Exatamente, o enredo dele chama a atenção pela originalidade do tema abordado no campo "religião". Vale a pena conhecer essa história ;) Bom filme!

      Abraços!

    • Olá, Monique! Aí, ta vendo, por isso que é bom sempre dar uma passadinha aqui pela Estante, nós trazemos opiniões sobre filmes interessantes e pouco falados também para o público! Pois o cinema sempre é uma linda viagem, seja no filme desconhecido, seja no filme famoso! Bom filme!

      Abraços!

    • Olá, Mayara! Ah, quem sabe se estiver passando pelo cinema e estiver de boa, vc consiga dar uma chance a uma proposta cinematográfica diferente, hein?! Recomendo a experiência! Se assistir, dps conte para nós o que achou ;)

      Abraços!

    • Olá, Maria! Obrigado. Ah, dê uma chance a uma proposta nova então! Quem sabe vc não se surpreende? Se assistir, dps conte para nós o que achou!

      Abraços!

  • Não sabia que o carinha do Rogue One estava nesse filme. Preciso ver para concordar com você!

    Fiquei sabendo do filme pelas indicações ao Oscar 2017, não consegui ver antes da premiação, mas pretendo ver o mais breve possível.

    beijos
    Psicose da Nina | Instagram

    • Olá, Nina! Pois é, né; é sempre uma maratona divertida conseguir assistir todos os filmes antes do Oscar (e um desafio interessante ao nosso tempo e disponibilidade)! Na verdade o Adam Driver é o carinha da nova saga de Star Wars (começou no filme VII); mais que carinha, eu diria que ele é "o cara" mesmo haha: ele interpreta o grande vilão da nova saga (o Kylo Ren, lembra?!).

      Abraços!

  • Olá, Gui

    Parabéns pela analise, grande, mas bem detalhada sem ser spoilorenta.
    Eu não tinha conhecimento sobre esse filme, e, por eu ser católica, é algo que me agrada. Ver um filme tão controverso em alguns aspectos sobre algo que faz parte de mim é bem interessante. Já tive uma experiência assim em Spotlight. Vou dar uma conferida no trailer, que está na postagem, mas eu ainda não dei play; assim poderei ter uma perspectiva mais visual da situação.

    Beijos
    - Tami
    http://www.meuepilogo.com

    • Olá, Tamires! Obrigado. Hahah tomamos um cuidado cirúrgico com spoilers aqui na Estante, pode confiar sempre! Que bacana então será a sua experiência com o filme; o mais bonito de ter fé numa religião é estar aberto a novas visões e interpretações da sua religião, pois isso sempre renova a nossa fé, caso a convicção persista. Este filme mesmo mostra uma história sobre isso: uma fé resistente, mesmo diante dos mais variados desafios! Neste sentido, é uma história muito emocionante! Bom filme ;)

      Abraços!

  • Olá! Achei fantástico e perturbador. Por acaso gravei este filme pensando ser outro. Sou católica praticante e catequista e decidi ver no que ia dar. Achei audacioso Scorsese se dar ao trabalho e logo, me surpreendi. Assisti duas vezes. Kkk bem, vi o filme por dois angulos: 1. Não vivemos para "este" mundo, logo, todo o sofrimento tem uma razão, um sentido que entenderemos na vida eterna, afinal será que morrer não é bom?
    2. A Fé firme e convicta não esta adstrita em fazer ou não algo mas sim no que realmente sentimos e acreditamos...o cristianismo nos ensina a viver para o próximo, nos doar para o próximo logo essa é a maior prova de Amor e Fé. Paulo já dizia: é preciso que eu morra para que Ele viva.

Share
Published by
Na Nossa Estante

Recent Posts

Divertida Mente 2 [Crítica]

Eu sei que a Disney não tem entregado seu melhor nos últimos tempos, principalmente em…

2 dias ago

Do Fundo da Estante: Meu Primo Vinny [Crítica]

O Oscar de atriz coadjuvante para Marisa Tomei por Meu primo Vinny (1992) é considerado…

3 dias ago

Um Lugar Silencioso: Dia Um [Crítica do Filme]

A duologia de terror misturada com elementos de ficção científica Um Lugar Silencioso do diretor…

6 dias ago

O Mundo de Sofia em Quadrinhos (Vol.1) [Crítica]

O mundo de Sofia é um clássico da literatura que eu não li e queria…

1 semana ago

Bridgerton – Terceira Temporada- Parte 2 [Crítica]

A segunda parte da terceira temporada de Bridgerton começou com muitas polêmicas! Eu li os…

1 semana ago

Do Fundo da Estante: Quinta-feira Violenta

O produtor, diretor e roteirista californiano Skip Woods fez em Quinta-Feira Violenta (Thursday no original)…

1 semana ago

Nós usamos cookies para melhorar a sua navegação!