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As montanhas se separam [Resenha do filme]

Nos seus 131 minutos o novo longa de um dos maiores nomes do cinema chinês contemporâneo contará em três atos um épico conto de amor. Um filme lindo esteticamente e discursivamente. Com habilidade é inserido um forte teor de crítica social e política, e para contar essa história o diretor decide começar com um clássico das narrativas literárias: o bom e velho triângulo amoroso! Chamo de épica, porque a obra é dividida em três partes, como uma jornada épica (além de ser um filme de mais de duas horas). Todas elas são desenvolvidas com uma certa independência, focando num conto cada, porém, todas ligadas pela mesma linha temporal e pela mesma protagonista. Esta forma de desenvolvimento é interessante, inclusive: cada parte abandona a outra em certos aspectos, mas cada ato serviu para avançarmos para o próximo.
A história se passa entre 1999 e 2025; a primeira parte começar em 99 não é por acaso (ainda mais no período de ano novo): ano lotado de esperanças, final de uma década otimista e apreensiva, fim também de um século de horror, guerras, paranoia, de um mundo dividido. A tônica para o fim de uma era e o início de uma nova era: expectativas renovadas. Era a “virada do milênio”. O filme começa com uma dança, uma cena repleta de cores vivas, vibrantes (toda esta primeira parte do filme é marcada por uma coloração mais quente). No centro desta dança está nossa Shen Tao (a linda Tao Zao; e há este easter egg entre os nomes dos personagens principais e seus respectivos intérpretes), a qual conhecemos como uma mulher alegre e esperançosa; é uma professora infantil numa cidade rural chinesa, e de gostos e amizades simples. Uma pintura bucólica de uma China virginal, ainda não tocada pelo fardo de ser o futuro do mundo, nem o maior estandarte do capitalismo.
Como mulher, ela se rende constantemente aos imperativos patriarcais, numa sociedade rígida, conservadora e tradicionalista (especialmente diante da influência ocidental, a qual não muda, mas só reforça estes valores). Para iniciar esta sua jornada, seu primeiro motor é a obrigação de escolher entre dois homens, os dois digladiando-se pela sua atenção e seu amor. Como se Tao não tivesse mais alternativas, senão traçar desde já um futuro “belo, recatado e do lar” e formar o seio da família tradicional brasi… opa, digo, chinesa, ela então faz sua escolha.
A princípio, podemos pensar: Tao toma a decisão errada. Pegamos nosso lencinho, limpamos o canto do olho, como se chorássemos diante de uma tragédia shakespeariana, e apreensivos dizemos: “Não, Tao! Não escolha ele!”. Mas é assim que “tem” que ser; e ela não faz a escolha errada: ela escolhe certo, escolhe bem certo, tal qual o mundo requer dela – o mesmo mundo da sociedade globalizada, angustiada e sem identidade, e tão conservadora e sexista quanto aquela sociedade tradicionalista.
O agora marido de Tao, Zhang Jinsheng (Yi Zhang), representa a perfeição estética do mundo do consumo, do empreendedor pragmático, do sociopata sedutor. Como dirá um colega seu em dado momento do filme, enquanto o agracia: “um capitalista”. Vivemos num mundo de imagens, e o sistema fez aqui suas duas primeiras vítimas: Jinsheng, por acreditar na cartilha do homem moderno empreendedor, que segue à risca, e Tao, por acreditar em Jinsheng. Não é spoiler, caro leitor, é matemática: assim que você vê os dois juntos nos primeiros 30 minutos de um filme de 131, você fala “vai dar merda!”. E a tragédia que acometerá os personagens está prenunciada. O personagem de Jinsheng é importante para o desenvolvimento da crítica no subtexto do filme: é através dele que as vidas de todos ao redor serão impactadas, e não por menos ele é a figura do capitalista.
As escolhas de Tao e Jinsheng foram impulsionadas pela ‘busca de uma vida melhor’; mas “vida melhor” nesta acepção que conhecemos, materialista. Não apenas ela teve que escolher, ele também fará escolhas que o elevarão a um patamar de acumulação de capital e de poder (interessante notar que nesta segunda parte do filme Jinsheng nem chega a aparecer – ele é só uma voz por meio de um tablet, como uma espécie secular tecnológica de entidade transcendental). É em 2014 que veremos este novo Jinsheng e também uma nova Tao. 2014 contrapõe-se a 1999, porque representa os resultados do fim brusco das ilusões e expectativas para o novo milênio (que logo em sua alvorada nos brindou com um 09 de setembro de 2001; triste peça que o destino prega nas esperanças). O passado, antes pura tragédia, fez-se novamente, agora como farsa. A contragosto os personagens (as pessoas) amadureceram, e é a década da frustração. As cores predominantes são versões escuras das cores antes vibrantes e uma maior presença de cinza; a inocência dando lugar a uma amarga maturidade.
Onze anos depois dos fatos daquela primeira parte do filme, agora temos um vislumbre das consequências que sofreram os personagens. Inicia-se com o pretendente rejeitado, o simplório Liang ‘Liangzi’ Jangjung (Jing Dong Liang). Ele se encaixa aqui como um arquétipo claro também: o proletário explorado. Todos dispõem dele porque ele é só “óleo para a máquina do Estado” ou engrenagem para o sistema; até o roteiro descartará Liangzi quando não tiver mais uso (e da forma fria e cruel com que somos descartados num sistema baseado na competição: esquecimento). É um homem apagado, sem história, que apenas sobrevive; pessoas como ele é melhor nem ter desejos. Tudo o que almeja é tirado de seu horizonte (sarcasticamente, pela figura do capitalista): seu emprego, seu amor platônico, sua vingança; e quando se adapta a nova realidade, é só para ser explorado também e quando ganha uma família, perde sua saúde. Tao mais uma vez cruza a sua vida, mas só para dar o adeus (com um bolo de dinheiro). A nova Tao é triste; ela já “não canta mais nas festas de fim de ano”. Seus constantes sorrisos alegres estão perdidos em algum lugar do tempo. Como um tigre preso (cena não aleatoriamente inserida, como pode parecer), Tao é uma força calada, um choro reprimido, sofrimento silencioso. Ela encara o desmoronamento de suas ilusões. Fugiram-lhe todos os seus afetos e amores (a última dessas relações que lhe sobrou foi com o pai – que o tempo e a natureza mesmo tratarão de encerrar). A única alegria de Tao é que o seu filho, de 07 anos de idade, distanciado por motivos de força maior, está vindo visitá-la.
A criança, cuja tem a carinhosa alcunha de “Dollar” vê a mãe pela primeira vez em anos. Mas, além de ter se tornado um legítimo 21th century digital boy, o pai já traçou os planos para o seu futuro: atualmente está numa escola internacional, onde aprende a desaprender a própria cultura, língua e identidade, o próximo passo é mudar-se para a Austrália e estudar diretamente no exterior. Sartre que disse: “criança, este monstro que os adultos constroem com as suas frustrações”. Porém, não se trata só das frustrações do pai; subentendida aí há uma lógica de mundo globalizado e de uma fuga para o chamado primeiro mundo, em busca do sonho capitalista. O filme dará exemplos de embates entre identidade e dissolução das identidades/culturas locais numa cultura global. Não por menos, também podemos perceber uma presença silenciosa e constante de marcas comerciais em algumas cenas, compondo o ambiente (como uma estranha natureza morta), mas não por razões publicitárias, num movimento habilidoso do diretor que lembra o também genial “Amores Expressos” de Wong Kar Wai (outra pérola da filmografia chinesa – Hong Kong, na verdade – que deve ser visitada).
Fato é que Tao não possui conexão com o filho – a não ser por um [artificial] fone de ouvido compartilhado. Sua única interação bem sucedida é através de bolinhos gyoza que ela assa, com todo o carinho de mãe: o menino, com certo esforço tirado de seu universo digital, aprova o mimo – e pela primeira e última vez, Tao sorri nesta segunda parte do filme. O gyoza traz uma imagem forte: é a própria China que está se perdendo, um passado, uma cultura (uma criança chinesa que aos sete anos ainda nunca tinha provado uma iguaria tradicional de seu povo); um tempo novato é chamado a provar de volta o sabor desta velha China, na esperança de que ele goste. Num apelo emocionado para não esquecê-la (a mãe e a pátria), o garoto é ultimamente presenteado com as chaves de casa, caso um dia queira voltar – e os bolinhos estarão lá esperando (como peças de decoração que eternizassem uma memória).
Surpreendentemente, então, o filme vai ao futuro. Neste seu terceiro e último ato, mais onze anos depois, em 2025, a criança de sete anos agora é um adulto de 18. Desde há muito tolhido de uma figura materna (a mãe e a pátria), aparentemente os anos só fizeram mal para sua relação com o pai (hoje estabelecida através do Google tradutor). Neste ponto o personagem central e os desdobramentos que acompanhamos é Zhang ‘Dollar’ Daole e da relação com o pai. Este, um Jinsheng corrompido, consumido pela própria ambição, não só espiritual, mas fisicamente deturpado (o próprio Smeagle tornado Gollum pelo Anel). Assolado em dívidas e em casos escusos que o levaram ao ostracismo e à bancarrota, passa seus dias com outros ricos decadentes, acompanhado de whisky, jogos de azar, drogas e armas (aliás, ama mais sua coleção de armas do que o filho; sua maior preocupação é não ter “um alvo para atirar”). Vítima de seus próprios desejos, que só seguiram as ilusões que este sistema vendeu-lhe, Jinsheng sofre do vazio desejante de quem conseguiu tudo o que desejou e agora é cegado pela angústia de não ter mais “alvos”; cego a ponto de não ver sequer seu filho e as possibilidades de afeto na vida. Perdeu a habilidade de amar. Não conseguimos ter nem pena e nem raiva do personagem; não conseguimos sentir nada por ele. Tamanha a sua falta de empatia, ela atinge até o espectador; e para nós, é como se Jinsheng já estivesse morto.
A única saída de Daole é ter se tornado o jovem obstinado e independente que é agora; tenta tomar as rédeas do próprio futuro e desafiar o imperativo categórico que lhe relegou à sua situação de vazio existencial e negou-lhe a própria história. Se antes era um estrangeiro na sua terra natal, hoje é um estrangeiro por opção em uma terra estrangeira: o menino que cresceu sendo alfabetizado em inglês na China, é agora o homem que busca aulas de mandarim para aprender a própria língua materna. Não se encaixa na Austrália, não se adequa a Universidade e não quer uma vida formal ou uma carreira, nem o “sucesso” do pai. Tornou-se um nômade do mundo globalizado, transitando por realidades flutuantes. Sua única motivação é abandonar esta vida e ir atrás do passado que lhe foi tirado. Materna, aliás, é sua busca; através da professora de mandarim, com a idade que teria sua mãe hoje, redescobre edipicamente o significado deste carinho na vida.
Ainda guardando no peito a chave que a mãe lhe deu aos sete anos, ele decidirá ir ao reencontro de Tao e voltar para a China. No fim, não sabemos se as novas aspirações serão alcançadas. É interessante notar, porém, a alta presença de branco e de cores claras nesta fase do filme, anunciando um apaziguamento das frustrações e o anúncio de uma esperança mais descorada, mas ainda assim esperança – para um futuro que não sabemos o que esperar. Digo que o final do filme é mais conciliador do que parece porque apesar de um balé solitário no meio da desolação (ao som da agitada e melancólica “Go West”[1], dos Pet Shop Boys), é também um sopro de vida no cenário desolado e um início de uma reconstrução.
A cena inicial e a cena final do filme parecem fechar-se ciclicamente. A euforia da esperança inocente por um futuro melhor, com a aspereza de uma esperança temerária por um futuro melhor. Fica uma aparente mensagem da heroína retomando aquela vida do início, porém agora marcada pelas chagas de uma trajetória e as amarguras da vida, ela, solteira, sozinha, está tão livre quanto no começo para dançar. Porém sua dança terá um novo cenário; e aquele futuro do qual falei, imprevisível, só será construído sobre os escombros melancólicos e cinzas do passado despedaçado.
FICHA TÈCNICA
Título: As montanhas se separam
Título Original: Shan he gu ren
Ano: 2015
Diretor: Zhang-ke Jia

Gui Augusto

[1] Também a escolha da música tem uma finalidade; a versão dos Pet Shop Boys é claramente um sarro, reinterpretando com uma atmosfera decadente o alegre hino gay, clássico da Village People. No videoclipe, de 93, os Boys pintam um EUA distópico, Ocidente tão autoritário e ditatorial quanto a criticada ditadura soviética; se somarmos à letra da canção, surge a ironia: o Ocidente, sinônimo de progresso, land of freedom, o sonho americano?, “vá para o Oeste” e veja que não. Assim, tanto a música quanto o filme tratam com certa dose de ironia a máxima “vá para o Oeste”, visto que Ocidente foi/é a direção da consciência e das aspirações dos personagens, e também de uma China contemporânea. O uso desta música na cena final do filme (e não haveria escolha melhor, ironia mais fina) revela a mensagem do diretor: não vá para o Oeste, pois Tao foi, e daquele jeito ela terminou. Não é panfletagem partidária ou ideológica; é um apelo à sua China: não se globalize, não se venda, mantenha-se original, conserve suas tradições e sua cultura.
Na Nossa Estante

View Comments

  • Oi Gui!
    Não conhecia esse filme, para falar a verdade não costumo assistir filmes chineses então dificilmente iria ver. Mas sua resenha me deixou interessada, é muito diferente de tudo que já vi. Vou ver se tem no Netflix.

    Beijos,
    Sora - Meu Jardim de Livros

    • Se não conhece a cinematografia chinesa, pode iniciar-se sem medo por este grande exemplar! Um filmaço de um dos maiores cineastas chineses. Nunca procurei no Netflix, ficaria feliz de saber que tem lá; tomara que tenha. Se não tiver, na internet acha fácil para baixar!

      Beijos.

  • Oie Gui =)

    Já quero assistir esse filme *-*
    Eu sou a doida dos filmes estrangeiros em minha casa rs... Esses dias vi um indiano em que a fotografia era linda <3

    O enredo de As Montanhas se Separam me pareceu triste e comovendo, e como adoro um bom drama tenho certeza que vou gostar dele.

    Obrigada pela dica ;)

    Beijos;***

    Ane Reis.
    mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
    @mydearlibrary

    • Procure sim, Ariane. Um grande filme. O enredo é mais ou menos isso que você teve a impressão mesmo, mas por trás tem muito mais. Olha que legal, sempre bom descobrir as cinematografias estrangieras; vc lembra o nome desse filme indiano?

      Beijos!

  • Oiii Gui

    Gosto de filmes estrangeiros, como os chineses, japoneses e franceses. Achei a dica bem legal e gosto desses dramas que tocam a gente

    Beijos

    resenhaatual.blogspot.com

    • Desses sou mais apaixonado pelos japoneses. Que bom saber de mais uma entusiasta deste grande cinema! E por sua vez, do pouco que conheço do chinês, este filme aqui é uma grandiosidade imperdível! Procure sim!

      Beijos!

  • Oláá! Tudo bem?
    Nossa, mas parece uma história tão densa que estou querendo muito assistir agora! Engraçado que acho que eu nunca assisti nenhum filme chinês... Quero ver como funciona esse início com final cíclico, fiquei realmente interessada!!
    beeijo

    http://lecaferouge.blogspot.com.br/

    • Procure sim, Tamara. Um filme imperdível. Se nunca assistiu nada do cinema chinês, não há melhor maneira de começar!

      Beijos!

    • Obrigado, Nana. Sim, é magnífico! Pode adentrar no universo do cinema chinês sem medo com este belo representante!

      Beijos!

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