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40ª Mostra Internacional de Cinema: Depois da Tempestade

Conferimos a Cabine de Imprensa do filme Depois da Tempestade

Hirokazu Kore-eda entrega seu novo trabalho, depois do cansativo e um pouco desencontrado (para os padrões Kore-eda, que são altos), Nossa Irmã Mais Nova e o ótimo Pais e Filhos (Melhor Filme de Ficção Estrangeiro, 37ª Mostra). Com reminiscências de várias marcas de sua obra, Depois da Tempestade traz um equilíbrio do que há de melhor na fórmula de Kore-eda; coincidentemente, estão nesse novo longa alguns atores de dois de seus melhores filmes, Andando e Pais e Filhos. O longa estreia nesta quinta (17) nas salas brasileiras no circuito comercial alternativo, mas já teve algumas exibições na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo antes disto, entre 20 de outubro e 02 de novembro, o bastante, aliás, para levar o Prêmio da Crítica de Melhor Filme Internacional dessa edição da Mostra.
Todo ano praticamente há um filme novo de Hirokazu Kore-eda, e todo filme seu sai premiado de festivais, dos grandes (como Cannes – em 2013, com Pais e Filhos) aos pequenos. Não é por menos: estamos falando de um dos melhores diretores japoneses da atualidade (e eu, pessoalmente, diria um dos melhores do cinema atual mundial e não só do Japão). Kore-eda é comparado por alguns a Yasujiro Ozu, legendário diretor japonês, de nome grafado na História do Cinema, por trazer em suas histórias elementos de simplicidade, com temas familiares, passado e futuro, o papel das tradições, a esperança no presente e o que há de mais banal na vida cotidiana do povo japonês (e tirar disso uma bela poesia) – tal como Ozu fazia. Por sua vez, o próprio diretor alega em seu trabalho maiores semelhanças com as obras de Mikio Naruse (outro clássico essencial do cinema japonês) e do inglês Ken Loach.

A história de Depois da Tempestade se passa em Kiyose, uma cidade pequena, próxima a Tokyo e nela acompanhamos a jornada de Ryota (Hiroshi Abe), um escritor fracassado e com bloqueio criativo, há mais de 15 anos vivendo dos resquícios de sua fama como escritor de um best seller. Hoje ele faz bico como detetive particular, num trabalho mais necessário do que ele gosta de admitir (constantemente o justifica como uma “pesquisa de campo para seu próximo livro”), o qual mais se confunde com sua vida do que ele mesmo percebe (seus olhares de detetive e de escritor são os mesmos, o que, aliás, não passa despercebido numa determinada cena com sua mãe, ao encontrar um vizinho na rua). Ele empreende seus talentos de observação e espionagem mais na busca de respostas na sua vida particular (como para buscar o passado e encontrar algumas verdades sobre seu falecido pai ou para “estalquear” a ex-mulher) do que na vida de seus clientes, quem, aliás, ele só usa como uma desculpa para fazer um dinheiro a mais enquanto sacaneia e faz jogos duplos – dinheiro também para sustentar seu vício em apostas em corrida de cavalos (justificado sempre por boas intenções).
Enquanto se preocupa com matar seu tempo em futilidades, as responsabilidades que constituiu ao longo da vida vão se acumulando como a roupa e a sujeira em seu quarto: sem resolução. Sua família não tem muita confiança na sua capacidade de se ajeitar na vida, sua ex-mulher já não aguenta mais cobrar a pensão atrasada. Ele só encontra alento mesmo no amor de seu filho, para quem quer ser um melhor pai do que considera o seu ter sido para si e com quem corre o risco de perder contato, como forma de retaliação da mulher; e em sua mãe, Yoshiko (da espetacular Kirin Kiki – sério, espetacular!, tal qual esteve noutro filme japonês recente, premiado na 39ª Mostra, O Sabor da Vida, da diretora Naomi Kawase), sempre preparada para doar o amor e a compreensão maternos ilimitados, e apesar da irresponsabilidade do filho, está sempre pronta para oferecer a casa, o quarto, os conselhos, o prato cheio e a roupa lavada (e até um insólito sorvetinho caseiro “com gosto de geladeira”). A chance da mudança vem juntamente com um tufão, anunciado para os próximos dias pelas televisões e rádios locais. É na noite de tempestade que as pontas soltas da vida de Ryota irão se encontrar; é depois da tempestade que ele encontrará um rumo na vida, talvez.

O trabalho que Kore-eda faz com os atores é sempre fantástico. A própria construção das personagens conta o filme de maneira inteligente. No roteiro e na condução as atitudes de Ryota não estão ali para julgamento. Quem lhe julga são outras personagens e com motivações críveis para isso (como sua irmã ou sua ex-mulher), mas também há aqueles lhe compreendem (como sua mãe e o filho, a sua forma). Enquanto isso, Ryota, para nós, público, é Ryota: mais um homem comum, com seus demônios, seus erros, defeitos e qualidades; tropeçando para viver a vida.
Outra força de seus filmes reside nos diálogos, e não diferente, Depois da Tempestade nos brinda com memoráveis linhas de diálogos, em geral ordinárias, banais, mas que guardam uma potência filosófica e poética. Um claro exemplo disso é o principal diálogo do filme, aquele travado entre Ryota e sua mãe na cozinha do apartamento, na madrugada pré-tempestade. O roteiro tem esse poder de imprimir diálogos simples, mas ricos; aliás, é especial e particularmente belo que alguns deles venham acompanhados de um momento culinário: a centralidade da gastronomia, como um axioma para as relações humanas, e sua relação filosófica com a vida, são marcas culturais retratadas não só no cinema de Kore-eda, e nem só no japonês, mas no próprio cinema asiático.
Os diálogos, através da aparente banalidade, alcançam temáticas mais profundas, como a condição atual da humanidade, o passado e o futuro, a vida e a morte, e a memória. Também questões críticas da sociedade japonesa: o envelhecimento da população (numa cena é mencionada a falta de crianças nas cercanias do prédio onde Ryota cresceu – cenário real, de um conjunto habitacional, onde, aliás, o próprio diretor Kore-eda cresceu); o homem “pós-moderno”, menos confiante e menos dono de si; as dificuldades sociais e econômicas, cada vez mais determinantes; ou até a especulação imobiliária. Porém, todos esses temas tocam também a própria sociedade contemporânea, visto que são comuns não só à japonesa, mas a várias outras do mundo: situação dos idosos, situação do mundo do trabalho e da crise de empregos, a fragilidade das relações amorosas ou familiares, a falência e a frivolidade do amor.

Há uma peça de música clássica recorrente no filme, colocada como um objeto de cena e elemento narrativo (a Sra. Yoshiko faz aulas de violino). Ao tentar descrever o que sentiu enquanto executava o quarteto para cordas nº 14, Opus 131, o músico Krzysztof Chorzelski classificou esta peça de Beethoven como “o predecessor Clássico de um ‘road movie’”. A música de aproximadamente uns quarenta minutos ininterruptos, para quem toca dá a impressão árdua e revigorante de estar passando por diversas fases, até um retorno “ao lar”, com um final triunfante (por ter vencido todos os desafios); com isso, ela seria uma metáfora para a própria vida, afinal, é ela também uma longa jornada com altos e baixos, mas aprendendo a perpassá-la, o final é sempre triunfante.
Depois da Tempestade é um filme sobre a necessidade de aprender a percorrer essa jornada, especialmente, abraçando o Hoje, aquilo que se tem agora, a vida possível, e com isso se superar e alcançar a satisfação de se viver bem. Tanto a música (provavelmente uma referência pessoal de gosto do diretor) quanto o filme são lições disto. Mostrando a singela jornada de um homem comum tentando reestruturar sua vida, Kore-eda pinta com suavidade e firmeza através de sua câmera um retrato crítico, sem ser enfadonho, melancólico, sem ser depressivo, e compassivo, sem ser piegas, de se viver numa época: a contemporânea.
Trailer:
FICHA TÉCNICA
Título: Depois da Tempestade
Título Original: Umi yori mo Mada Fukaku
Diretor: Hirokazu Kore-eda
Data do lançamento no Brasil: 17 de novembro de 2016.
Gui Augusto
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