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40ª Mostra Internacional de Cinema: Uma Bandeira Sem País

Conferimos a Cabine de Imprensa de Uma Bandeira Sem País

Este filme é um documentário de roteiro simples, visualmente didático e uma experiência diferente de linguagem documental conduzida pelas mãos do experiente diretor iraniano Bahman Ghobadi. Sua experiência, proveniente de mais de uma dezena de filmes dirigidos (e premiados em Mostras passadas) e também do tempo como assistente de Abbas Kiarostami (um dos nomes mais importantes da história do cinema, que o diga do cinema iraniano) é evidente pela firmeza nas câmeras e pelos enquadramentos, decupagem e montagem, trazendo uma rica linguagem cinematográfica para um documentário, no qual os entrevistados não só contam sua história, mas também são convidados a reinterpretá-las, sendo dirigidos como se atores fossem e encenando um roteiro.
Apesar da fluidez da narrativa (especialmente por ficar agradável através do belo trabalho de filmagem), talvez não seja uma ideia tão profícua assim colocar os entrevistados para atuar e por vezes durante o filme bate aquela vontade de assistir uma ficção ao invés do documentário, pois toda a técnica de cinema é tão bem aproveitada, que parece um desperdício não o ser num drama ficcional, com atores.
As encenações dos dois principais entrevistados soam meio “fakes” e fora de tom (como a desnecessária e forçada anedota de Nazdar, o amor de puberdade de Nariman; ou os montados choros e diálogos com a mãe que Helly Luv protagoniza), porém essa impressão não compromete a importância e relevância da mensagem que é passada e nem das histórias pessoais que são retratadas. Entrelaçadas na montagem (e em alguns momentos até na mesma cena) as duas personagens vão recriando algum momento da sua história para contá-la, ao mesmo tempo em que contam também a história do Curdistão e do povo curdo.
Nariman Anwar ficou conhecido como Nariman, O Piloto; o “Ícaro curdo” ficou famoso nacionalmente quando desceu em seu ultraleve no meio das ruas para fazer um discurso numa manifestação política e ao receber ordem de retirar o avião do meio das ruas (devido à massa de pessoas que se aglomerava), não alcançou altura e velocidade suficientes e caiu, perdendo o ultraleve e quase a vida, ao vivo na TV.
Depois desse incidente ele quase invariavelmente virou uma celebridade e uma figura política para o povo curdo, mas seu único interesse é professar o seu amor pela aviação às crianças curdas (todas já bem instruídas da necessidade de saber pilotar um avião desde cedo, numa região onde a qualquer momento elas precisem fazer isso militarmente).
Helly Luv é o nome artístico de Helan Abdulla, uma jovem e linda cantora pop que seria apenas mais um rostinho bonito, alvo adorável dos machismos culturais na indústria do entretenimento (dos quais Lady Gaga e Beyoncé já foram vítimas e já se levantaram contra), se não usasse a sua música pop e aparentemente frívola como uma arma de empoderamento do povo curdo (e de quebra, por sua postura firme e batalhadora, um empoderamento feminino por si só), oferecendo através que seja do simples entretenimento um sopro de esperança para um povo tão sofrido. Na verdade, pessoalmente eu tomei conhecimento do nome dela antes de assistir ao filme, quando li uma matéria aleatoriamente na internet a classificando como uma espécie de “Shakira” curda que desafiou abertamente o Estado Islâmico.
Apesar de neste filme ela protagonizar uma desnecessária sequência final e exagerar nas encenações e no melodrama de alguns diálogos, feitos para passar a imagem da virtuosa altruísta (tipo um Bono Vox), é verdade que ela desafiou publicamente o Estado Islâmico (e está na sua lista de jurados de morte), e é verdade também que apesar do pastiche de símbolos sérios em sua música, seu figurino e seus clipes, e da estetização de uma realidade violenta e triste, ela é uma figura necessária e uma voz potente para um povo que precisa ser ouvido.
Nariman está também nesta vexaminosa sequência final do filme, recriando seus momentos em que serviu de fato como soldado para as forças curdas que hoje lutam no front sírio contra o ISIS. Aliás, dessa sequência final do filme, só prestam os incríveis takes aéreos sob o som de uma música lamentosa curda e os épicos enquadramentos das crianças olhando para o céu.
Quando se fala “nacionalmente” de alguma coisa do Curdistão, vale dizer que não estamos falando de um país, materializado, com fronteiras, reconhecido pela ONU e posicionado oficialmente na geopolítica internacional. É muito mais complexo: trata-se de uma nação, mais do que apenas um povo, que possui língua própria (falada no filme), cultura própria, tradições, identidade nacional, bandeira, mas “só” não têm um país. A questão dos curdos é tão complexa principalmente porque esta nação está dividida entre quatro países distintos (e por vezes antagônicos), numa região que é um verdadeiro caldeirão cultural e uma bomba-relógio social: Irã, Iraque, Síria e Turquia; sua reivindicação (histórica, aliás) provocaria um desmembramento desses quatro Estados-nacionais.
O problema faz com que eles então se constituam num povo sem teto e sem terra espalhados por aquela região do globo terrestre. No entanto, seu nacionalismo é muito coeso e o que também é captada pela câmera do documentário com competência e afinco é a relação das crianças com a história, cultura e a tradição curdas. Numa interessante cena as crianças são instadas a responderem por que querem pilotar aviões, noutra, por que gostam de música; sempre que se manifestam, é chocante mas real a possibilidade de ouvirmos de bocas pueris e inocentes palavras como guerra, violência e morte. Um povo que desde cedo não tem tempo a perder e nem hesita em responder com violência a violência com que é tratado, e para quem o nacionalismo não é uma reação exacerbada, mas sim forma de sobrevivência.
Não é à toa, afinal, por um século pelo menos o povo curdo não conhece outra forma de vida que não a luta, não conhece a paz e nem sequer direitos; sua história é tracejada por sangue, xenofobia e guerras intermitentes. Desde o genocídio turco de curdos, à opressão do regime de Saddam Hussein, no Iraque, que massacrou ao menos 183 mil curdos; desde a primeira guerra do Iraque, quando curdos também sofreram estando no ponto de bala entre EUA e Iraque, à segunda guerra do Iraque, quando sofreu tudo de novo. E hoje, especialmente, com a situação trágica da Síria e com a devastadora ascenção do Estado Islâmico, quando mais curdos são massacrados.
As duas histórias retratadas no documentário são apenas dois exemplos de tantas outras similares. Helly Luv, que hoje é cantora pop, é filha de “peshmergas”, a força revolucionária militar do Curdistão iraquiano (ambos, seu pai e sua mãe faziam parte e pegavam em armas para lutar pelo povo curdo). Nariman já pegou em armas para lutar pelo seu povo assim que o chamado bateu à sua porta – não o chamado oficial, mas o chamado do coração, do dever de ser um curdo e manter sua cultura e tradição. O mérito deste filme, apesar de simples e com algumas falhas narrativas, é nos trazer pelo menos um imagético recorte da história e do apelo desse povo, assolado numa situação longe de ter fácil resolução nesse século XXI ainda.
Exibições na 40ª Mostra Internacional de Cinema
Dia 31/10 – 19:40 – Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 3
Dia 01/11 – 21:15 – Cinearte 1
Dia 02/11 – 19:30 – Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 2

Mais informações: http://40.mostra.org/br
Gui Augusto
Na Nossa Estante

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