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O silêncio do Céu [Resenha do Filme]

Conferimos a Cabine de Imprensa de O silêncio do céu. Filme estreia dia 22/09/2016.
No início, logo após o letreiro anunciando o nome do filme, estampa-se na tela um largo céu azulado, com nuvens meio douradas, quente e silencioso. Soa quase como uma boa ironia, dada a obviedade da referência. Ficamos até desejosos que fosse, mas talvez não seja. Em outros momentos do filme é possível perceber excessivo didatismo na apresentação de referências e metáforas – como se por trás das câmeras existisse um ansioso e apressado estudante. E Marco Dutra não é nenhum estudante; da safra atual do cinema brasileiro, o diretor é um dos quais vale a pena ficar de olho. Desde 1999, ele vem assinando mais de uma dezena de curtas-metragens, três longas, dos quais um é muito bom (Trabalhar Cansa, 2011) e outro bem fraco (Quando Eu Era Vivo, 2014; um filme de terror com a Sandy…). O Silêncio do Céu é seu terceiro filme, filmado no Uruguai, fica entre os dois extremos: um trabalho equilibrado, atento, cuidadoso, mas ao fim deixa um “gostinho” de “poderia ser melhor”.
Diana (Carolina Dieckmann) e Mário (Leonardo Sbaraglia) formam um casal que acaba de voltar após uma longa separação e tenta restaurar a convivência e a vida familiar com os dois filhos, entretanto, uma tragédia pode botar tudo a perder e comprometer a tentativa de superar as chagas do passado. Como uma especie de confissão, tal passado nos é revelado através da voz off de Mário nos tornando seus analistas. Esse recurso narrativo leve, adequado, literário, aliás, a história é baseada no romance “meio” autobiográfico do escritor argentino Sergio Bizzio, o qual assinou o primeiro roteiro. Ao mesmo tempo, o passado recente de Diana vai sendo construído com fragmentos da história na própria tela, com o desenrolar da narrativa e o ponto de vista de Mário, revelando mais mistérios e motivos para o silêncio aparente na relação.

A referida tragédia ocorre logo no início do filme, anunciando a fagulha responsável pela ignição das jornadas das personagens; trata-se de uma sufocante e crua cena de estupro [1]. Já de pronto pode-se desconfiar da integridade do tratamento de um tema tão delicado quando se diz que há uma cena de estupro numa obra de entretenimento – sabemos as polêmicas, por exemplo, que Game of Thrones tem provocado – mas sem soar excessiva ou mero recurso para choque, aqui a cena é contida, angustiante, justificando-se por traduzir o ‘silêncio’ através do som (oco, abafado) e dos gritos calados de Diana, no limite onírico entre um pesadelo e a realidade.

A intenção [2] não foi levantar um debate político, porém é verdade por outro lado que pode ser sim indigesto e crítico retratar um estupro, trazendo à tona numa ficção aquilo que é uma realidade tão triste para tantas mulheres. Seria legítimo o questionamento da necessidade de explorar ou não o “espinhoso” tema, mesmo que sem o tratamento sério, mas ao mesmo tempo exumando os fantasmas de um tabu a cada vez que uma obra de entretenimento o aborda.
No filme o suspense é bem construído, por elementos dentro e fora de cena. Além disso, a fotografia é agradável e há sim algumas belas cenas trabalhando o gênero e também traduzindo aquele aspecto onírico em várias cenas. No entanto, a iluminação é um aspecto que incomoda às vezes, por ser marcada demais e soar caricatural – coincidentemente, me lembrou dum outro suspense com Leonardo Sbaraglia, o ótimo As Viúvas das Quintas-feiras, cujo a iluminação mais escura e sóbria é o que talvez faltasse em “O Silêncio”. Um dos fatores principais da construção desse suspense é o som; Dutra faz um ótimo trabalho – seu destaque na carreira, aliás, mais do que diretor, é como compositor de trilhas, e aqui assina a sonoplastia (com o cuidado até de dar característica aos carros de cada personagem) – porém, soa excessiva essa construção, sob pena de em certo momento não levarmos mais o filme a sério (similar ao que ocorre na iluminação).

Outra forma de ancoragem dramática do suspense é o trabalho com os detalhes, as metáforas e referências, que têm coerência na história e justificam-na, entretanto, são colocadas por enquadramentos e encenações óbvios, que as entregam muito facilmente, pecando pela falta de sutileza, e soando didático demais (como certa insegurança com a capacidade de entendimento do público). É possível perceber que pela referência constante a espinhos, cactos (como os que marcam a mão de Mário) e a anedota da cegonha e do porco-espinho (sem necessidade aparente de surgir em cena, a não ser pela sugestão óbvia) que alguma coisa não está bem na relação do casal e o ambiente está “espinhoso”, rude, requerendo cautela; ou pela presença do livro do botânico e ocultista renascentista, Paracelso, bem como uma ambientação específica na loja de paisagismo, que há algo de sinistro e mágico sugerido no núcleo das personagens Malena e Néstor (incluindo os detalhes no rosto de Malena ou em seu defeito na perna).

O destaque mesmo é para o nosso astro, o insólito cacto ‘rabo-de-macaco’: uma suspeita planta fálica “que cresce 5cm por ano” e está sempre apontada para baixo (uma metáfora sarcástica do falo assustado de Mário, da emasculação da personagem masculina, figurada nessa tortuosa forma broxada e espetada). E há a famigerada pedra, que Dutra e a equipe ficaram felizes na coletiva por alguém ter notado, pois era uma referência importante para ele, e contou que nem sempre essas referências vêm em primeiro plano para o público e esse jogo com os detalhes ao contar uma história é que mais o anima no trabalho com o cinema. Porém, não tinha como o público não perceber a tal pedra, se toda vez que ela aparece ela é enquadrada e/ou iluminada! Tal qual os espinhos têm muito a dizer sobre a relação tortuosa do casal, a pedra é representativa de um peso que se instaurou dentre ele e a cristalização de um momento de culpa e irresolução, sempre ali, de canto, persistente e inadequada, no canto duma mesinha.
Já no tocante ao casting, é possível destacar mais pontos positivos do que negativos. Ao passo que Carolina Dieckmann e Paula Cohen são boas escolhas de atriz, mas não se destacam (sendo que Carol até anuncia uma boa destreza no cinema, para quem só a conhecia de novelas) e estão medianas, há a veterana atriz uruguaia, Mirella Pascual (famosa pelo recomendado Whisky, 2004, também presente no suspense distópico Bem Perto de Buenos Aires, 2014), estupenda como a sinistra “mãe”, Malena. Chino Darín (SIM, filho do HOMEM, que faz o “filho”, Néstor, um dos antagonistas, não convence e soa falso e afetado demais com seus cacoetes e trejeitos (será que o talento não é herança de sangue?).


Aqui sem dúvida Leonardo Sbaraglia, outro grande ator argentino (não, não existe apenas o Ricardo Darín lá), faz um excelente trabalho com o seu Mário, uma personagem introspectiva de quem ele traduz através simplesmente de olhares e da linguagem gestual toda a complexidade de características e traços psicológicos, como a covardia, a mediocridade, a hesitação, o medo, a tensão e as alterações profundas que irão ocorrer em seu caráter. Desde cedo Leo [3] já dava pistas do quão bom ator seria, evidentes em clássicos do cinema argentino como Caballos Salvajes (1995), Cinzas do Paraíso (1999), Plata Quemada (2000), estando creditado em mais de 80 trabalhos, e em produções de sucesso recentes, como Relatos Selvagens (2014).
De certa forma o arco de Mário no filme será um arco de redenção, mas uma redenção deturpada, que através da vingança (contra si mesmo – contra o personagem que criou para esconder o Mário real) buscará ser o homem que nunca foi. Até o filho de menos de 10 anos de idade soa mais decidido e mais “homem” que o pai. Ele buscará curar-se de medos, insegurança (“mas alguns medos não têm cura”), no que é também um manifesto sobre o homem moderno, que não pode ser indeciso, falho, hesitante e tem que ter o lugar do “macho” numa sociedade sexista e patriarcal, sendo o contrário motivo de vergonha e sua broxada como Ser. O tema bota em pauta, ainda, os laços de confiança na relação de casal homem-mulher e o suspense dramático gerado por uma tensão constante nesse cerne depois de um mote inicial trágico que o coloca em xeque, lembrando em muito uma coprodução nórdica recente, Força Maior (2014), que vale a pena conferir.


O filme se utiliza do recurso de final inacabado, porém parece perder-se em algum lugar antes de seu fim, parecendo que utiliza o tal recurso mais como uma fuga do comprometimento com uma resolução. Tal recurso pode caber muito bem como fica evidente e.g. na recente obra-prima do cinema brasileiro, Aquarius (2016), porém não é o caso aqui, em que a premissa, apesar de forte, vai sendo conduzida com tal excesso de sugestões e escaladas de tensão que não levam a lugar algum, que no fim termina como o cacto e o falo de sua história, broxado.
Dados do Filme
Título: O silêncio do Céu
Título Original: Era el cielo
Diretor: Marco Dutra
Ano 2016
Gui Augusto

[1] A
qual Carol Dickman contou na entrevista coletiva ter feito com orgulho, pela
dificuldade oferecida pelo trabalho ofereceu e o desafio que seria – inclusive
por ser a única mulher nua dentre homens que não conhecia e uma das primeiras
cenas a ser filmada

[2] Como
admitiu o produtor Rodrigo Teixeira em coletiva, ela existe para efeitos
narrativos (de fato, a premissa trágica assim é essencial para explicar todo o
deslinde da história e as escolhas das personagens, sem o que não haveria todo
o suspense e toda a tensão existentes) e foi rodada antes do recente e amplo
acalorado debate na opinião pública sobre a cultura do estupro.

[3]
Ele, que é além de tudo um bonachão e uma figura bem simpática, disse em
coletiva – entre piadinhas e bebericadas em sua cuia de mate – que “és um
workaholic”, que, porém, pensa em dar um tempo na carreira depois dos próximos
projetos e “aposentar-se” um pouquinho (mas já?!).

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