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A comunidade

Apesar de infelizmente o cinema nórdico ser pouco difundido aqui no Brasil, um diretor dinamarquês tem ganhado bastante proeminência nas últimas décadas, para além dos círculos habituais do público mais cinéfilo, abrangendo outras audiências e oferecendo um competente vislumbre da força que marca este cinema (afamado no mundo através do sueco Ingmar Bergman – sagrado!); trata-se de Thomas Vinterberg, que é relativamente novo na cena (apesar de quase 30 anos de carreira e de 19 trabalhos já lançados), alçado a um panteão de grandes promessas do cinema contemporâneo pelo seu 17º filme, A Caça (um dos melhores suspenses dramáticos que já vi; tem na Netflix! Corre lá), e contando com indicações nos principais festivais europeus e americanos, e um extenso currículo com filmes locais e coproduções, incluindo até um videoclipe do Metallica (um dos mais diferentes da banda, carregando o estilo cru e visceral do diretor). Ele volta grande em A Comunidade, certamente maior do que em seu filme anterior, mas já não tão grande quanto esteve em A Caça.
A história passa-se nos anos 70, e toda a atmosfera da “era de aquário” e dos anos pós-68, a retórica política daqueles tempos e também toda a estilística da moda que os marcou. O casal dinamarquês Erik e Anna, no impasse de dar finalidade a uma casa herdada por Erik e para que Anna não se sinta solitária num local tão grande e vazio (e nem enlouqueça com a “falação” do marido), decide ratear o valor ao invés de vender o imóvel e, neste rateio, trazer novos moradores. Assim, como uma República estudantil então, eles montam uma comunidade; todos adultos (bem, nem todos) e com seus empregos e vidas (bem, nem todos), tornam-se uma verdadeira família, entre amigos e conhecidos do casal e estranhos, convivendo sob um código de conduta básico, sem líderes e tomando decisões numa criativa Ágora (a mesa de jantar) através de votos igualitários.
A experiência dará certo. Até o primeiro natal, porém. A escalada de tensões que anuncia este destino já começa bem antes; desde o início do filme. A própria sequência da festa natalina na verdade é emblemática para traduzir o estilo do diretor: é uma sequência feliz, feita para não ser feliz; e ela registra uma reviravolta na história. Cenas sobrepostas num crescendo, ao som de uma música natalina cantada por um coral infantil, sorrisos estampados na tela, cenas de alegria, mas de alguma forma um clima muito sinistro e uma apreensão veem sendo construídos no nosso inconsciente – o recurso paradoxal de cenas alegres com música triste ao fundo gera o estranhamento. A música já vinha denunciando o desfecho. Um discurso de frio existencialismo: constrói uma representação de felicidade padrão, e logo em seguida a destrói, desnudando a fragilidade do conceito de felicidade.
O diretor deixa aqui novamente a sua marca: a destreza com que cria um verdadeiro jogo entre diálogos, trilha sonora, gestos, planos e enquadramentos, para construir uma atmosfera absolutamente tensa. A sua câmera é nervosa; cada take, cada still, por mais banal que pareça, esconde uma tensão. Muitas vezes um enquadramento simples é recriado como um enquadramento tenso, ambíguo, sugestivo, por um mero reposicionamento de um detalhe da cena. Assim, os mínimos detalhes, são captados e ganham outra linguagem na sua lente cirúrgica: a expectativa do observador vai sendo ancorada aos poucos, conforme a tensão vai sendo construída numa crescente mais horizontal do que exponencial ou geométrica. São olhares, toques, zooms de um rosto ou uma parte do corpo, ou um objeto, um beijo, um sorriso. Com habilidade de mestre, Vinterberg extrai das cenas o clima de um suspense angustiante – e que não cessa até o fim do filme.
Por mais que o final não seja tão tenso quanto o filme anuncia (como o de A Caça), mesmo assim ele não deixa de anunciar essa tensão. A Comunidade se revela no final como um drama muito mais leve do que parecia, mas você só é capaz de descobrir isso depois que o filme acaba mesmo, pois até a subida dos créditos você foi induzido a um estado de tensão e expectativa tão forte, que o mínimo que espera para o desfecho de cada filme deste diretor é a maior das tragédias. Por outro lado, a narrativa pode se desgastar pelo uso tão constante dessa ancoragem com quebra de expectativas, e especialmente em A Comunidade estes recursos passeiam nas bordas entre o cansativo e o habilidoso.
Para desempenhar os papéis, vale destacar aqui o magnífico trabalho que a dupla de atores que interpreta o casal Erik e Anna faz. A química entre Ulrich Thomsen e Trine Dyrholm está perfeita, e Trine, aliás, mais uma vez entrega um trabalho espetacular na telona (e sem dúvida pode ser considerada uma das melhores atrizes atualmente – e indico os também ótimos In a Better World e Troubled Water para comprovar). Outro destaque é para os atores mirins. As personagens infantis de Vinterberg são nada do que você espera de uma criança; de construção psicológica complexa e colocadas em situações limítrofes para nossos sensos e tabus (atitudes e diálogos fora do contexto infantil, sutil sugestão de romances, sexualização). No entanto, não se assuste ou não julgue sem antes assistir o filme: tudo é feito com muito cuidado e tem um sentido, não sendo mero “exploitation” ou choque. Pode-se ler como uma provocação que critica o papel da criança numa sociedade de adultos perversos – mas seria assunto à parte, pois dá tema pra mesa de bar e pra banca examinadora. Eles serão, inclusive, mais decisivos do que os adultos para a história do filme (em momentos chave, serão os responsáveis por movimentar o enredo).
A metáfora da comunidade demonstrará na verdade uma visão além da história do filme: o quanto pode ser difícil e complexo conviver, enquanto seres humanos, um com o outro em proximidade. Já ouviu aquela máxima “de perto ninguém é normal”?; pois bem, Vinterberg encontra uma via para retratá-la em seu filme. Nos seus filmes mais autorais o núcleo de personagens é trabalhado sob a noção de um microcosmo, uma pequena e sufocante comunidade. O diagnóstico é: este “sufoco” existe por causa do próprio ser humano e seu comportamento, e sua natureza complexa e contraditória. O discurso, com isso, não é dos mais otimistas a respeito da convivência em comunidade, e muito menos trabalha com uma visão romantizada do termo; a verve de Vinterberg é bem mais cruel e realista que isso, mas por outro lado não quer dizer que denote um pessimismo também na possibilidade ou na esperança da comunhão entre seres humanos. Pelo contrário, corrobora, sim, que ela é possível, mas com a condição de ser complexa, paradoxal e marcada por conflitos de interesse.

Ao cabo de tudo compreendemos a verdadeira mensagem do filme. Toda a tensão e o suspense finalmente dão espaço para a revelação de que este é um filme sobre o amor – permeado por uma complexa natureza humana e uma variedade de desejos, incluindo alguns mais obscuros e nada românticos, como o de controlar, de vencer, dominar. O amor faz as pessoas chorarem, muda os seus caminhos, muda elas próprias. Pessoas morrem por amor. O amor pode ser insuportável, mas como será dito aqui, “ele está em declínio no mundo”, e é interessante o movimento retroativo do filme para fazer este manifesto: dá alguns passos para trás no tempo e situa sua história nos anos 70, para fazer na verdade uma crítica aos tempos atuais, anunciando ali o início da era de “declínio do amor”.

Com A Comunidade, Vinterberg traz de volta todos os elementos que marcam sua assinatura e estilo, de um interessante cinema autoral que já se delineia em sua filmografia; é um filme seguro, com grande estilo e uma fotografia impecável, além de ótimas personagens e diálogos fortes. Apesar de não alcançar o mesmo primor de A Caça, é mais um belo registro que nos conclama a ficar de olho nesse diretor e acompanhar sua obra.

Trailer:

Dados do Filme
Título: A comunidade
Título Original: Kollektivet
Direção: Thomas Vinterberg
Ano 2016

Gui Augusto

Na Nossa Estante

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