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Raul Seixas e o início, o fim e o meio…

Dessa vez resolvi falar de música. Eu havia avisado que sou um pouco diversificada (risos), mas o que me move a escrever nesta coluna hoje é por conta de dois elementos: 1) sou uma apaixonada por Raul Seixas, cresci escutando suas letras; 2) dentre os diferentes temas que o Raul tratava em suas letras um deles é muito latente que é sobre religiosidade. Tema este que me chama muita atenção, afinal não só volto meus estudos para esta temática como percebo que o assunto se faz muito presente no cotidiano do brasileiro. Para isso selecionei quatro músicas que considero centrais para a temática com os devidos comentários do por que elegi as mesmas. Então, sem mais demoras vamos ao assunto.
A primeira é uma composição conjunta com o Marcelo Nova, intitulada “Pastor João e a igreja invisível”. Faixa pertencente ao décimo quinto álbum e último de Raul, chamado “A panela do Diabo” (1989). A letra é impactante, pois faz uma crítica à postura de lideranças religiosas que estariam se utilizando do sagrado para obtenção de bens. Uma crítica que se dá justamente no momento em que os movimentos cristãos, principalmente de caráter neopentecostal, estão ganhando espaço no país. E talvez tenha sido por isso mesmo que a figura elegida tenha sido a de um pastor, o pastor João que é capaz de transformar “água em vinho, chão em céu, pau em pedra e cuspe em mel” e que ainda vende barato a sua água benta, podendo inclusive parcelar em três vezes…

A segunda música que selecionei é “Gita” que pertence ao álbum de nome homólogo (1974) e é inspirada na obra hinduísta “Bhagavad Gita”. Se não for a mais bela composição de Raul, certamente está entre mais profundas e tocantes. A beleza da letra se encontra no fato de que ela mergulha no cerne da questão que inquieta há tanto tempo a humanidade: sua relação com o sagrado. O compositor acaba por chegar à conclusão de que o sagrado está nos olhos de quem vê e que ele pode se manifestar de diversas formas e em qualquer situação. Por isso mesmo ele afirma que o sagrado é “o início, o fim e o meio”. Em outras palavras, o sagrado pode estar em qualquer elemento real ou irreal, pois é uma demanda humana. O que nos leva a pensar que as categorias ‘certo’ e ‘errado’ não são fixas, mas fruto de uma necessidade de legitimação de um indivíduo ou grupo…
A terceira música é “Judas” que compõe o oitavo álbum de Raul “Mata virgem” (1978). A música é fruto da parceria entre Raul e Paulo Coelho e retrata uma visão interessante sobre a história da traição. Nela Judas não é um personagem mesquinho e não amigo. Pelo contrário, Judas aparece com uma personagem que era amigo de Jesus e por ser tão amigo é que Jesus o teria escolhido para ser aquele que o ajudaria a completar o seu plano. E os compositores vão adiante fazendo uma crítica de que “é lá em cima, lá na beira da piscina, olhando simples mortais das alturas fazes escrituras e não me perguntam se é pouco ou demais”. Em outras palavras, a crítica é de que a personagem Judas acabou sendo ao longo dos séculos mal compreendida e se tornando de certa forma enigmática na narrativa da paixão. Uma vez que o martírio de Jesus implica na postura de Judas, mas também será sua postura que levará a composição da categorização negativa dos judeus e Jesus ao mesmo tempo deixa de ser visto como judeu.
Mas este refrão chama atenção para outro aspecto, à leitura feita de Jesus é fruto de produções literárias, produções estas que convergem e surgem num contexto de formação identitária cristã. E ao que tudo indica Paulo não conheceu a história da traição o que aumenta ainda mais as dúvidas sobre esta personagem tão enigmática. A música acaba por remeter também ao filme de Scorsese “A última tentação de Cristo” onde a mesma questão é colocada (um belíssimo filme que certamente deve ser visto e que prometo em breve resenhá-lo).

A quarta e última canção é “Carpinteiro do universo” que pertence também ao álbum “A panela do Diabo”. A letra é realmente sensacional e que apesar de não falar em um único momento no nome Jesus, possibilita essa comparação pelo fato de utilizar a expressão “carpinteiro do universo”. Expressão esta que nos possibilita gatilhos de memória que facilmente nos sugerem que Raul e Marcelo Nova estão se referindo a essa personagem. Personagem está que é colocada como egoísta por querer consertar algo que não haveria condições de ser reparada. No entanto, apesar de ter consciência persiste na tentativa de “mudar a direção do trem”. Abrindo mais o leque de discussões o que se percebe é que sempre em momentos de tensões e inseguranças a humanidade está criando heróis, mártires, messias, profetas, deuses para que estas figuras possam intervir na história e provocar mudanças. Todavia, estas transformações não ocorrem, pois a produção de heróis está sempre se fazendo necessária, já que o que se almeja ser consertado não pode ser, como diz Raul.


Enfim, poderia passar horas falando sobre as composições do grande Raul Seixas. Um dos maiores gênios do rock brasileiro, sua genialidade não está apenas no estilo, mas também em suas composições articuladas, reflexivas e ousadas. Composições estas que nos dizem muito e nos alertam para questões do cotidiano e como dizia o próprio Raul: “Quem não tem colírio, usa óculos escuros. Quem não tem papel dá o recado pelo muro. Quem não tem presente se conforma com o futuro”.
Abraços da Ju Cavalcanti.
Na Nossa Estante

View Comments

  • Não gosto muito de musicas, as vezes ouço alguma coisa e nem percebo o que estou ouvindo. Por ser evangélica, eu prefiro não falar nada sobre esse assunto, principalmente sobre o cantor em questão.

    Blog Prefácio

  • Eu sou to time da Sil, não sou muito de escutar músicas por diversos motivos, mas gosto do Raul, meu pai e meu irmão gostam e quem de história não tem certa admiração pela criticidade de suas letras néh?!?! Agora a sua analise... ah é muito particular néh Dona Ju!

    • Isso é verdade, Jaci. Encontrar um historiador que não goste do Raul é difícil. rs Ainda não conheço um que não goste. E agradeço Jaci pelo comentário da análise. rs :)
      Bjs,
      Ju

    • Só para constar: particular no sentido de ser completa, de dialogar com o conhecimento acadêmico [confesso que eu pouco faço isso em meus textos por opção], por sempre colocar na sua analise seus conhecimentos. Sempre digo que você corre o risco de está ajudando muita gente no dever de casa. kkk

  • Olá

    As músicas de Raul,
    trazem um perfume
    tão intenso de inteligência,
    que mesmo que passem
    mais cem anos,
    certamente elas serão lembradas
    e repetidas...

    Que o amor nos vista a vida,
    com as suas mais preciosas cores...

  • Ouço menos música do que gostaria e confesso que meu conhecimento de Raul Seixas se limitas as suas mais famosas, que todos, de uma forma ou de outra, conhecem. A análise mais aprofundada das letras, no entanto, me trouxeram uma certa curiosidade. Vou procurar ouvir algumas de suas músicas.

  • Olá Ju! Adorei a postagem e o embasamento mais "teórico" das músicas do Raul. Realmente religiosidade é um assunto que dá pano para manga, me interessa ouvir diversas opiniões sobre o tema, sempre surge algo novo. Não escuto muito Raul, por falta de prática mesmo, mas gosto muito das canções que dele. São letras para o raciocínio funcionar e não como algumas que dizem ser músicas hoje em dia. kkk Abafa! Raul é sempre Raul...adorooo! Um dos grandes ídolos do Rock Nacional mesmo. Nessa última música que você fez observações eu bem que penso nisso mesmo...sempre a humanidade criando heróis, nada muda...tanta coisa a se debater e pensar que ficaria aqui mais de um ano escrevendo. Adorei a postagem de coração, muito bem escrita, fruto de
    um olhar crítico e inteligente.
    Beijos!
    Monólogo de Julieta.

  • Oi Juliana!

    Adorei a postagem! Não conheço muitas letras do Raul, apenas as mais conhecidas, mas sei da sua importância para o cenário musical brasileiro. Achei muito bom você trazer as músicas e explorar as questões que ele quis mostrar em cada canção, muita gente (como eu) não teria percebido isso. É sempre bom conhecer um pouco mais de uma pessoa tão importante na música.

    Beijos,
    biblioteca-de-resenhas.blogspot.com.br

  • Antes de tudo, parabéns minha querida Juliana!

    Agora vc cutucou positivamente um fã do Rauzito...hehe. Minha adolescência foi recheada das lendárias canções dele juntamente com os grandes poetas/letristas Cazuza, Renato Russo e Humberto Gessinger por exemplo.
    Raul carrega pra mim um amálgama de tantas coisas que ele fala de A a Z, de cabeça pra baixo, que passa pelo baião até chegar no velho é bom Rock And roll. Confesso que não é fácil falar de Raul. Sou suspeito pra falar porque eu pirava e hoje admiro muito existir esse legado que ele deixou que é nosso. Faz parte do Brasil para o mundo. São raríssimas as pessoas que não conhecem alguns sucessos dessa figura lendária de canto a canto desse país. A começar pelo título da resenha que igual ao filme dedicado (documentário), acho que resume bem e faz a metáfora da trajetória da obra vasta do Raul.
    Agora as músicas analisadas com temáticas espirituais, religiosas e tal são cada uma mais interessante que a outra. "Pastor João é a igreja invisível". Poxa como essa canção pode ser tão atual né, e ser reatualizada no nosso cotidiano. Com o empoderamento das igrejas neopentecostais que estão ai a cada dia mais pescando os fiéis, e o discurso agrada, pois vai de encontro a chamada teologia da prosperidade, onde ter salvação é aqui mesmo em mundo imediatista do capital.(muito coerente isso). A crítica dos compositores Raul e Marcelo Nova é dessa figurinha carimbada que carrega esse estigma da liderança que usa e abusa da boa fé dos fiéis,(O pastor). Pois, já tudo é possível, inclusive ceder um espaço em templos religiosos de grande ostentação como Drive thru da oração(incrível fast food dá fé).
    A outra canção Gita, um clássico que ficou registrada com a parceria do Paulo Coelho que lhe renderam bons frutos na carreira é outra pérola que toca no assunto espiritual da dupla. Conta a lenda que Paulo Coelho que influenciou Raulzito nas iniciações de ocultismos e paradas de bruxaria, apresentando o tão famoso e marginalizado o bruxo inglês Aleister Crowley. E parecem que foram fundo nisso com uso de drogas psicoativas e rituais mesmo. Ou seja, essa influência iria com certeza reverberar em suas canções em suas vidas. Raul morreu anos depois em 1989 de decorrentes de alcoolismo e Paulo Coelho seguiu como pseudo-escritor de auto-ajuda que até Madonna tem livros de cabeceira.(os crítico literários detestam tudo isso..rs). Mas “Gita” não. Essa música é sensacional! A dupla mandava muito bem.

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